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Poesia em tempos de barbárie

Dez poetas brasileiros apresentam suas percepções sobre a situação política vivida no Brasil em versos contundentes, numa seleção organizada por Claudio Daniel, colaborador do Prosa, Poesia e Arte. Os poemas fazem parte do caderno Poesia em Tempos de Barbárie e surgiram da experiência do Laboratório de Criação Poética – um curso teórico e prático ministrado à distância pelo próprio Claudio Daniel, via internet (Skype).

Bárbara Gael - Bárbara Gael

No Laboratório, são discutidos conceitos teóricos sobre a natureza da poesia, o processo criativo, os gêneros poéticos, entre outras questões, além da discussão dos textos escritos pelos alunos. Quem desejar saber mais sobre o curso pode escrever para o e-mail [email protected] e solicitar informações sobre dias e horários das aulas.

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Coturnos
(Márcia Friggi)
 
Pisam nas pálpebras
as pétalas da manhã
e seus decretos de luz
Pisam sobre ossos
a trama das horas
suas teias e dramas
Pisam nos pés
presságios de algemas
e sêmen e sangue
Pisam na íris
farsas e fardas
fardos de horror
suástica na carne
títulos, ações
bíblia, whatsapp
unção dos coturnos
dólar, Wall Street
dízimo, Auschwitz

(Brasil. Eleições presidenciais 2018)

* Marcia Friggi nasceu em Mata (RS) e atualmente reside em Indaial (SC). É especialista em Linguística, graduada em Letras pela Unicruz (RS) e professora de Língua Portuguesa e Literatura da rede estadual de Santa Catarina. Participou das antologias Senhoras Obscenas e Mulherio das Letras. Em 2019, lançará seu primeiro livro de poesia, Lâmina.

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Oitenta

(Edelson Nagues)
 
Uma família negra
em um carro branco.
Soldados brancos/negros
em um tempo de espantos.

Um soldado negro
que não se ache tanto
sabe do sangue negro
o interpenetrando?

Sabem os transeuntes
da saga dessa família?
E dos soldados autômatos,
com sua mitologia?

Sabem, os que observam,
da dor por sob a pele?
Ou do valor de mercado
de cada um que se vende?

E da roleta-russa
armada em cada esquina?
É risco igual para todos?
Ou as balas vêm de cima?

O que fazer, agora,
com esse corpo em dano,
que, embora sem vida,
grita seu abandono?

Como apagar o pavor
dos olhos de uma criança,
se o metal é veloz,
mas fere em câmara lenta?

Para além dos estatutos,
impõem-se leis de pedra.
São oitenta disparos
e uma família negra.

 
(Brasília, 10/4/2019)

* Edelson Nagues é mato-grossense, radicado em Brasília (DF). Estudou Direito e Filosofia, com pós-graduação em Língua Portuguesa. Com vários textos premiados, é autor do livro de contos Humanos, além de duas obras de poesia, Águas de Clausura (10º Prêmio Literário Asabeça) e Palavras para Estrangular Silêncios (Patuá, 2019). É coautor do CD Anand Rao Musica Poemas de Edelson Nagues e organizador da antologia Respeitável Público: Histórias de Circo e Outras Tragédias.

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Sova

(Caio Graco Maia)

a Evaldo Rosa dos Santos
 
se à parte um hálito de iodo e ódio
o açoite ora conservar seu monte
a espera enturma com teu sangue
se no cristálico espinhal do cárcere
mais cresce a carne que o oiramento come
a espera enturma com teu sangue
se abris ou códices ou outra farsa
engorda o muco que sorveu teu nome
a espera enturma com teu sangue
se um coldre mouco noite noite espreita
gozar o turno de seu rabo insone
a espera enturma com teu sangue
não te irarias agora, negro, negra,
em rudo e belo tono, em soba, em bronze?
a espera enturma com teu sangue

* Caio Graco Maia é natural de Salvador (BA). É pesquisador em filosofia (Walter Benjamin e crítica literária) no programa de mestrado na Universidade Federal de Sergipe, estado onde vive atualmente.

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Homens de joelhos

(Márcia Tigani)
 
Estão contritos os homens
com suas falas metálicas
mãos enlaçadas
como títeres de asfalto
São homens de preto:
perjuram pernósticos
na sala sombria
a refrega da rua
São homens piratas:
suas nódoas escondem
(na equação do dia)
tragédia e arremedo
Estão de joelhos os homens
Estão de tocaia
Cospem difusas orações
de suas bocas sujas
Salvem, homens impolutos
imaculados psicodélicos
alucinações induzidas
na turba histérica
Salvem,homens de joelhos
sobre humus, sobre-humanos
nessa terra estranha
que jaz em postas.

* Marcia Tigani, natural de São Paulo (SP), é médica, especialista em Psiquiatria e divide-se entre a carreira que escolheu por vocação e a poesia. Publicou os livros Caminhante: Prosas e Rimas ao Vento e Navegações e Pragens. Atualmente, divide-se entre seu trabalho em consultório em São José dos Campos e a participação no Laboratório de Criação Poética.

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Terra de Santa Cruz
(Scheila Sodré)
 
A língua da serpente
embala o sono
dos inocentes
a atmosfera ácida mata os frutos
dizima as sementes.
Não há futuro
trevas rítmicas que nos apertam
e trituram ossos
dia do luto.
Choro da terra
demônios riem
gargalhadas fétidas,
muro em ruínas
carpas sobem a montanha.
O dragão da fúria desce
nos queima a pele.
Estamos vivos?
Era uma vez
a terra de Santa Cruz
Solo da corrupção, injustiças,
escravos crucificados.
 


* Scheila Sodré é poeta, professora de Língua Inglesa, graduada em Tradução e autora da plaquete de poemas
Hemicrânia (Leonella, 2018).

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Mutações (Pantum)
[Edir Pina de Barros]
 
Um mar de soja é tudo o que se vê
agora ali, nos campos do cerrado,
não resta mais sequer um pé de ipê
nem olhos d’água, tudo foi arado;

agora ali, nos campos do cerrado,
não correm mais riachos transparentes,
nem olhos d’água, tudo foi arado
de soja e sorgo, viçam as sementes;

não correm mais riachos transparentes,
nem lambaris pequenos, mas ladinos,
de sorgo e soja, viçam as sementes;
por conta da ganância, desatinos;

nem lambaris pequenos, mas ladinos,
porque foram as matas derrubadas,
por conta da ganância, desatinos,
secaram os riachos, as aguadas;

porque foram as matas derrubadas,
não mais se existem bichos pequeninos,
secaram os riachos, as aguadas
onde pescavam homens e meninos;

não mais se existem bichos pequeninos,
nem peixes não existem mais nos rios
onde pescavam homens e meninos,
(os leitos estão secos, tão sombrios);

nem peixes não existem mais nos rios
– piquiras, lambaris ou matrinxãs –
os leitos estão secos, tão sombrios,
nas beiras não se têm panapanãs;

piquiras, lambaris ou matrinxãs,
não buscam, rio acima, seus berçários,
nas beiras não se têm panapanãs
nem cantam juritis, japus, canários;

não buscam, rio acima, seus berçários,
os peixes que passavam reluzentes,
nem cantam juritis, japus, canários.
que, outrora, ali viviam tão contentes;

os peixes que passavam reluzentes,
nos rios desses povos milenares,
que, outrora, ali viviam tão contentes,
no seu sagrado chão, antigos lares;

nos rios desses povos milenares,
(quem olha não entende ou mesmo crê)
no seu sagrado chão, antigos lares,
um mar de soja é tudo o que se vê!

* Edir Pina de Barros é antropóloga, professora universitária aposentada e perita judicial em processos que envolvem terras indígenas e quilombolas. Seu livro Os Filhos do Sol, publicado pela Edusp, foi indicado ao Prêmio Jabuti em 2004. É membro de Poetas del Mundo, sócia benemérita da Academia Taguatinguense de Letras (Brasília) e membro titular da Academia Virtual de Poetas de Língua Portuguesa. Mato-grossense do Sul, mora em Brasília. Seus poemas estão disponíveis na internet.
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Forbes Fobia
(Fabíola Lacerda)

Para Claudio Daniel
 
deus está sorrindo com sua coleção de metralhadoras
recostado em sua ferrari f40, sorri desenfreado
embevecido por ter um primogênito macho
sorriso de um canto ao outro
deus está muito satisfeito com seu exército
todas suas mulheres são impecavelmente submissas
deus na capa da forbes
faturamento recorde de suas empresas
deus sorri com seus grandes dentes brancos
sua pele, olhos, claror ariano
até aquele paiseco do sul, cujo nome deus voltou a esquecer,
lhe rende barris de sorrisos negros
deus está sorrindo
seus inimigos foram eliminados
deus, finalmente, uno
sem opositores, sem satisfações a dar
deus, simplesmente

* Fabíola Lacerda nasceu no sertão pernambucano em 1975 e vive em Recife, onde trabalha como servidora pública. Participou do Laboratório de Criação Poética e publicou poemas em revistas eletrônicas. Esta é a sua primeira publicação impressa.

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Vigília
(Ewaldo Schleder Filho)
 
As paredes do cárcere
ouvem só a sua voz.
E seus ouvidos,
só as saudações:
bom dia, presidente,
boa tarde, presidente,
boa noite, presidente.

Ao longe, gritos da cidade,
brados dos desalmados
estrangulam a noite.
O silêncio dos famintos
a querer pão e trabalho
desafinam a trilha do dia.

A feira está às moscas,
as mãos, vazias
A fábrica, lacrada e sombria
Surda é a voz do mercado
E crônica a fome, a sede, o medo.

 


* Ewaldo Schleder Filho nasceu em Curitiba, estudou Direito, Jornalismo e Publicidade. Quase a totalidade de seus escritos encontra-se em jornais e revistas – nacionais e algumas internacionais. Integrou a coletânea
Dez Poetas do Sul e co-editou o livro Mercosul no Divã. Foi premiado pela Fundação Cultural de Curitiba, curadoria de Décio Pignatari, com o clipoema Ezra Pound.

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Linha Férrea

(Kátia Marchese)
 
No trem das Gerais,
o jogo do infortúnio.

Entrega mulheres,
homens e meninos.
A nudez de um lado,
os cabelos do outro.
O pátio gira, gira
toca o infinito.
A palha aninha os corpos.
Insensíveis ao choque,
seguem as horas dos sinos.

– Colônia de Barbacena: não sabemos nada sobre isso.

No trem das Gerais,
o jogo do infortúnio.

Entrega ferro, nióbio,
tantalita e manganês.
Lavra a cava,
infiltra o desalmamento.
Choca-da-mata, águia-cinzenta
batem asas ao silêncio.
O peixe salta
no último redemoinho.
Mais dia menos dia, lá vai o Rio.

– Mariana, Brumadinho: não sabemos nada sobre isso.
O Insuportável contém as portas do esquecimento.

* Katia Marchese nasceu em Santos (SP), em 1962. Consta nas antologias Movimento Poetrix (Scorteci, 2004), Senhoras Obscenas (Benfazeja, 2017), Tanto Mar sem Céu – Laboratório de Criação Poética (Lumme, 2017), Casa do Desejo – A Literatura que Desejamos (Patuá-Flip 2018) e nas revistas Germina, Musa Rara e Zunái. Mora em Campinas e é gestora pública. Página no Facebook: www.facebook.com/tetedekatia.

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Viva, ainda
(Maria Marta Nardi)
 
Há homens reunidos no lado de lá,
almas de fogo,
estampidos.

Treinam olhos,
bocas
e tímpanos.
Escorrem ódio
e combustível.

Onde estão as falas evoluídas?
Ouço palavras novas com velhos sons.
Mais aterrorizantes,
impossível.

Tudo grita ao redor.
A verdade, desconstruída:
fatos, fraudes, fakes.
A ferida democrática,
ainda viva.

Hoje vamos matar alguém.

O rompido das palavras contra
absorve a vil simetria.
Não cairão os versos.
Não soltaremos as mãos.

* Maria Marta Nardi nasceu em Marília (SP) e reside atualmente em Campo Grande (MS). Formada em Letras pela PUCC/Unimar, é professora de Língua Portuguesa. Participou da plaquete Tanto Mar sem Céu, organizada por Claudio Daniel (Lumme Editor, 2017), colaborou em blogues e sites de literatura. Em 2019, publicou a sua primeira plaquete individual, Sobre o Caule de Água, pela editora Leonella.