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Um espelho chamado Dona Ivone Lara

Para uma mulher, negra e moradora da periferia, a grandeza de Dona Ivone Lara é muito mais que canção ou melodia primorosa. O "dona" não é apenas prenome. Sua trajetória e sua obra tem um significado que refletirá de forma permanente na história e com o bônus do sorriso negro, que nada tem a ver com alienação ou sujeição diante de infortúnios. É atitude

Por Dayane Santos, especial para o Portal Vermelho

Hoje, uma das ostentações da juventude é ter um Iphone com um headphone com bluetooth. Mas nos anos 80, a ostentação nas periferias de São Paulo era a caixa de som da vitrola.

Num sábado de sol, "era de lei" – gíria da época para designar algo que acontecia sempre – uma caixa de som colocada na porta de alguma casa no último volume. Não se tratava de nenhum evento, festa de aniversário ou confraternização. O som era para animar, enquanto a mulherada fazia a faxina ou lavava a roupa acumulada da semana atribulada pela longa jornada de trabalho.

Guaianases, no extremo leste de São Paulo, é um bairro montanhoso. Meu vizinho de fundo tinha a sua casa construída no alto do morro. Quase não o via nem ao menos sabia o seu nome, pois a saída da casa era na rua de cima. Mas a sua caixa de som era trilha sonora das minhas manhãs e tardes na rua.

Criada pelos meus avós paternos, que eram evangélicos, o samba não fazia parte da minha vida familiar, mas tive a sorte de ter um vizinho com excelente gosto musical que foi afinando os meus ouvidos. Enquanto pulava corda, ouvia Sorriso Negro, gravado por Dona Ivone Lara em 1981, em parceria com Jorge Benjor.

O pique-esconde era ao som de Bethânia cantando Sonho Meu. Pulava corda sob a voz atemporal de Clara Nunes cantando Alvorecer. E entre uma pulada e outra da amarelinha, tinha Caetano, Bethânia e Gilberto Gil cantado Alguém Me Avisou.

Essas e outras canções divinamente melodiadas e escritas por Dona Ivone Lara fizeram parte da minha infância, apesar de sequer saber quem e de onde era. Para mim eram apenas canções.

Na adolescência, a convivência com meu pai biológico, Carlos, me levou a um mundo novo: a roda de samba. Mas o fator fundamental para que eu voltasse a beber definitivamente da fonte da Dona Ivone Lara foi ouvir os Racionais MC's. Sim, o grupo de rap despertou a consciência racial, fazendo buscar o espelho para construir de fato a minha identidade. Sorriso Negro, Sonho Meu e tantas outras músicas da minha infância ganharam novo significado a parti daí.

É quase mágico o momento que a sua consciência encontra eco numa canção. O despertar te leva a ter sede de conhecimento. É como se acessássemos uma área não explorada do nosso cérebro que, ao ser ativada, revela muito mais do que somos.

Amigos e familiares questionavam quem era a "Senhora da canção" e porque estava ouvindo aquelas músicas que pareciam tão antigas. Eu pouco sabia sobre ela, afinal, acesso à internet era coisa para poucos no início dos anos 90. Mas a área ativada pelo cérebro me fez querer ir além da canção. Quem era essa senhora?

Acessando o computador do meu trabalho, nas horas vagas e sem que o chefe soubesse, encontrei algumas matérias de jornais com entrevistas. Descobri que seu nome era Ivone Lara da Costa. Órfã de pai e mãe, foi criada pelos tios, via numa comunidade humilde do Rio de Janeiro e estudou num internato.

Quando tudo em sua vida poderia se transformar em dor e sofrimento, podendo levar ao caminho imposto a muitos jovens negros do país, Dona Ivone contrariou as estatísticas e aos 12 anos começou a compor e escreveu "Tiê Tiê", inspirada em um pássaro que ela cuidava e brincava como se fosse a sua boneca, pois não tinha brinquedos.

Criada por uma tia muito rígida, ela era proibida de frequentar as rodas de samba. Apesar de parecer contraditório, já que a maior parte de sua família e do mundo ao seu redor ser formado por pessoas diretamente ligadas ao samba, a tia queria garantir que a sua sobrinha não se perdesse pelo caminho.

Ivone obedecia, mas como diz a letra da sua canção Força da Imaginação, a menina continuava a compor e "além dos pés e do chão, chega lá". Suas letras eram levadas as rodas de samba pelas mãos de seu primo, Fuleiro, que assumia a autoria das músicas, até porque ela temia ser rejeitada por ser mulher num ambiente dominado pelos homens.

Mas não tinha jeito. Sua força era tamanha que o primo passou a admitir que os versos e as primordiais melodias não eram dele.

Ela encarou o machismo no samba e nos anos 1950 e 1960 desbravou um espaço ainda inédito para as mulheres. Foi a primeira mulher fazer parte da ala de compositores de uma escola de samba, sendo a primeira sambista a criar um samba-enredo, com ninguém menos que Silas de Oliveira.

Pé no chão, ainda que fosse dançando miudinho, Ivone respeitou o desejo da família e manteve-se discreta no samba. Formou-se em enfermagem com especialização em terapia ocupacional e atuou na área até se aposentar, em 1977. Como assistente social, atuou em hospitais psiquiátricos e trabalhou com a médica Nise da Silveira, psiquiatra que revolucionou o tratamento de pessoas com limitação cognitiva, combatendo os manicômios e as barbaridades comedidas nesse ambiente.

Em 1975, enfrentou outro momento difícil de sua vida: perdeu o marido, Oscar Costa, que sofreu um infarto fulminante após receber a notícia de que o filho do casal, Odir, havia sofrido um acidente de carro. Em mais uma demonstração de resiliência, Ivone segui em frente. Ao se aposentar decidiu se dedicar integralmente à carreira artística.

Diante de tudo isso, novamente, as suas canções ganharam novo significado em minha vida. No entanto, pela primeira vez me vi refletida. Queria aquele sorriso negro, que nada tinha a ver com a sujeição servil à vontade alheia. Queria aquela força, a atitude daquela que não teme em seguir em frente, apesar dos muros que são colocados à frente.

O "Dona" também ganhou novo significado, revelando que nada tinha a ver com a idade. O pronome de tratamento era na verdade uma demonstração de que devemos ser donas de nosso destino.

Tive a felicidade de ir em alguns shows de Dona Ivone e a oportunidade de trocas algumas palavras com ela, sentir aquele abraço aconchegante e sincero. Estava não mais frente ao espelho, mas diante da grandeza de um ser humano que fez da sua existência um legado para o provo brasileiro.

Espelho da Vida
Dona Ivone Lara

Meus desenganos

Coisas da vida

Passam-se os anos

Aprendo a errar

Quero a beleza, coitada esquecida

Por quem não sabe perder

Nem mesmo ganhar

Já suportei dissabores demais

Tive prazer, mesmo sem paz

Aprendi que tem que ser mesmo assim

Todo princípio terá um fim

Vai e vem no mar as ondas

Que espelho da vida

Na praia as areias

São os sofrimentos do mar

Que ele joga pra lá

Ameniza a dor

Faz a gente sonhar

O encanto que traz o desejo de amar

São lições que aprendi vendo o mar