Bolsonarismo: a revolução irracional

Nos anos do imediato pós-Revolução Russa, obstáculos hercúleos ameaçavam a sobrevivência do nascente regime socialista. Os desafios multiplicavam-se a cada dia, enquanto os recursos necessários para enfrentá-los, fossem eles humanos ou materiais, mostravam-se pouco à altura da tarefa. Não fosse o bastante, o novo poder ainda se viu obrigado a enfrentar, entre os anos de 1917-20, uma cruenta guerra movida pelas antigas elites tzaristas, que tentavam a restauração.

Por Fábio Palácio*

Bolsonaro - Crédito da imagem: Gazeta do Povo

Ao final de anos de guerra civil, o país achava-se em situação falimentar. Era necessário pautar as tarefas da reconstrução. Dizia Lênin: “Temos agora perante nós uma tarefa muito complexa: depois da vitória na frente sangrenta, a vitória na frente sem sangue. Esta guerra é mais difícil”.

A luta havia mudado de forma. Suas armas agora eram a retomada da produção; a implementação de medidas e reformas; a reorganização das instituições políticas e da vida civil. A construção da nova sociedade galgava uma fase por assim dizer negativa para alcançar uma etapa positiva. Não mais se tratava de empreender uma tarefa destrutiva – sujeitar o inimigo militarmente e derrubar as velhas estruturas. Impunha-se administrar o país.

A fim de coligir sob uma única baliza os desafios colocados, a liderança revolucionária adotaria, a partir de 1920, a consigna construção econômica pacífica. Ela buscava codificar, em especial com a expressão “pacífica”, um esforço menos ostensivo e mais habitual, de caráter extramilitar. Não menos notável é o termo “construção”, quando seria possível, e até esperável, que se utilizasse “revolução”, no contexto de uma revolução econômica pacífica. Porém, como em revolução permanente – consigna erguida ainda antes de 1917 por Trótski –, o termo poderia soar inadequado. No momento em que se buscava reconduzir o país à normalidade, a palavra “revolução” – ainda mais se “permanente” – poderia passar a ideia de um estado continuado de exceção, espécie de convulsão persistente do corpo social.

Também o Brasil de nosso tempo trouxe à cena da história um movimento que se proclama revolucionário. Com seu caráter antiestablishment, o bolsonarismo ganhou uma aura de autenticidade que o ajudou a conquistar um eleitorado cansado da mesmice e cioso de alguma rebeldia. Dotado de invejável ímpeto disruptivo, o movimento habilitou-se a encarnar ideias de mudança radical.

Em seus primórdios, o bolsonarismo soube posicionar-se para as tarefas da fase negativa – que se impõem antes da chegada ao poder. Quando foi chamado a combater um inimigo convicto e organizado, a esquerda lulista, não hesitou nem um instante. O movimento – muito mais amplo, diga-se, do que o partido que o abriga – dotou-se rapidamente de convicção e disciplina, sagrando-se vitorioso na batalha eleitoral.

No entanto, uma coisa é vencer, outra é saber o que fazer com a vitória. E é neste ponto que o bolsonarismo exibe sinais de esgotamento. Não consegue passar à etapa positiva de sua missão.

O Executivo, sob Bolsonaro, mostra-se incapaz de atuar como centro coordenador de um conjunto mais largo de instituições. Seria de esperar que, como gesto inaugural de governo, o presidente convocasse as lideranças partidárias para conversar, alinhavar consensos e pacificar o país. Seria previsível que envidasse esforços para estabelecer uma sólida base aliada e isolar a oposição. Nada disso acontece.

Ao invés de compor com os partidos e coordenar-se com o Parlamento, o governo assanha seus apoiadores contra potenciais aliados, taxados de defensores da “velha política”. Indispõe-se também com outras instituições precípuas da moderna vida republicana, como o Judiciário e a imprensa. Esgueira-se, perigosamente, por sobre o vazio de um precipício mortal: o do isolamento político.

Por que agiria Bolsonaro dessa maneira? Haveria método em sua loucura? Ou tudo não passa de simples estultice? A fim de examinar o problema, é útil revisitar o elemento capital de toda construção política: a questão programática. O pensador italiano Antonio Gramsci contribui para a reflexão sobre o tema ao afirmar, em seus Cadernos do Cárcere:

[…] Pode imaginar-se […] que seja produtivo de efetividade um instrumento que deixa a vontade coletiva na sua fase primitiva e elementar de mero formar-se, por distinção (por cisão), mesmo com violência, isto é, destruindo as relações morais e jurídicas existentes? Mas essa vontade coletiva, assim formada elementarmente, não cessará subitamente de existir, dissolvendo-se em uma infinidade de vontades individuais que adiante, na fase positiva, seguem direções diversas e contrastantes? Isso, além da questão de que não pode existir destruição, negação, sem uma implícita construção, afirmação, e não em sentido ‘metafísico’, mas praticamente, isto é, politicamente, como programa de partido.



Com base no argumento gramsciano podemos afirmar que, se na fase negativa, definida como “primitiva e elementar”, sobressai-se o conflito – às vezes “com violência” –, na fase positiva deve predominar a cooperação. Só nesse último estágio, quando é chamada a governar, uma tendência política atinge a plenitude programática e efetiva-se como construtora. No plano concreto de nossa abordagem, algumas questões se impõem: o bolsonarismo atingiu a plenitude programática? Que objetivos o trazem à cena da história? O que pretende fazer com o poder conquistado?
Em seu discurso de posse, Bolsonaro localizou o fulcro de seu governo no combate às “ideologias nefastas” identificadas com um vago “marxismo cultural”. Este, porém, é muito mais um nome de fantasia – afinal, o léxico do bolsonarismo nem sempre pode ser tomado pelo valor de face. Quando fala em lutar contra o “marxismo”, esse movimento ultraconservador pretende, na verdade, solapar os valores da Ilustração e as promessas da Revolução Francesa. Tem por alvo a própria modernidade.

Esse programa de retorno ao passado – que já movimentou multidões na Alemanha e na Itália dos primórdios do século 20 – promove verdadeira cruzada contra instituições caras à moderna vida republicana. O bolsonarismo briga com o Parlamento; desdenha dos partidos; desconhece o sistema das Nações Unidas; contraria a liberdade de imprensa; afronta os achados da ciência experimental; censura a arte moderna. Ora, seria muita generosidade chamar tudo isso de mero “antimarxismo”. Como os próprios liberais vão percebendo – às vezes da pior maneira –, o bolsonarismo opõe-se a um conjunto muito mais amplo de ideias do que aquelas do marxismo stricto sensu.

Muitos, como o ideólogo-mor Olavo de Carvalho, pensam poder mandar às favas não apenas o legado kantiano, mas todo o Iluminismo e sua “ganga” racionalista. Há, porém, algo nessa herança civilizatória de que não podemos nos livrar assim, de forma tão desinibida. Um programa político de destruição das conquistas da modernidade é tão realizável quanto girar para trás a roda da história. Qualquer governo que se comprometa com esse projeto condena-se ao fracasso antes mesmo de assumir.

Bolsonaro e Olavo de Carvalho parecem ter consciência desse fato, mesmo que de forma sub-reptícia. Paulo Guedes, não. Recentemente o superministro da Economia perguntou ingenuamente a Carvalho: “Por que o líder dispara contra a revolução que inspirou?”. O que Guedes não percebe é que Olavo antecipa-se ao fracasso de sua própria receita, nomeando de antemão os “culpados” pela derrota de um projeto cuja falência deve-se, porém, apenas à sua própria natureza.

A verdade escancara-se a cada dia: o bolsonarismo não tem projeto factível para o país. Por isso receia abandonar a conflituosidade da fase negativa para engajar-se nos esforços ciclópicos requeridos de qualquer revolução em sua fase construtiva. Bolsonaro sabe que não veio para edificar nada. É ele próprio, aliás, quem o proclama: “O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa”, disse o mandatário em recente jantar em Washington.

O problema é que ninguém ascende ao poder apenas para “desfazer”. É da natureza da política, em sua fase positiva, o fazer construtivo: estabelecer sinergias, cimentar consensos, edificar projetos. A tudo isso Bolsonaro se mostra refratário. Quando diz ser contra a “velha política” – atentemos novamente ao ilusionismo do léxico –, o presidente quer dizer que é contra a própria política. A política boa e santa que não significa corrupção, mas entendimento e concertação.

O bolsonarismo pretende destruir a política em seu estágio supremo para retorná-la a seu estágio “primitivo e elementar”: a guerra. Uma guerra infinita, contra praticamente tudo e todos, pois que uma guerra contra a civilização. Como sustentar esse projeto de forma puramente intelectiva? Como convertê-lo em racionalidade programática? Como impulsioná-lo sem recorrer ao puro sentimento, ao ardor quase religioso, ao mais completo transe irracionalista?

Não espanta que o bolsonarismo viva à base de arroubos emocionais, oscilando freneticamente entre o eros da autoexaltação e o tanatos do ódio ao outro. Tampouco devia surpreender que assuma por vezes a aparência de um movimento acéfalo. Dotado de claros apetites irracionalistas, o movimento – como outros fenômenos disruptivos da cena contemporânea – não passa de um brado de fúria contra os excessos da globalização e do neoliberalismo selvagem. Contra “tudo isso daí”, porém, o bolsonarismo apenas imagina, de forma quase instintiva, o conforto de um passado idílico, a restauração de um estado primaveril anterior à crise. Sequer cogita que as raízes da crise residem precisamente nesse estágio original, e que qualquer solução precisa apontar para a superação, não para a restauração do passado.

Ao contrário das aparências, o bolsonarismo não porta uma utopia, mas uma distopia. Não é fruto daquilo que todos desejam, mas daquilo que todos temem. Não é uma revolução, mas uma autêntica contrarrevolução. Vivendo de paixão e entusiasmo, despojado de clareza programática, pouco pode construir. Para enfrentar tarefas destrutivas a febre das emoções é muitas vezes o que vale. Já para saltar à etapa construtiva da administração de governo torna-se imprescindível a ponderação racional em sua forma política superior: o programa de partido. E um programa sem efetividade não é verdadeiro programa.

O bolsonarismo vive o dilema das tendências sem projeto de futuro. O movimento não sabe ao certo o que fazer com sua “revolução”. Como não consegue alçar-se à etapa positiva-construtiva, precisa manter-se em revolução permanente. Só assim abastece os apetites distópicos de seus seguidores.

Há como ser diferente? Poderia ainda o bolsonarismo empreender uma inflexão, abandonando os excessos e inclinando-se ao centro? Sim, mas apenas ao custo da própria alma. Este é o dilema de Bolsonaro: se insiste em sua “revolução”, isola-se cada vez mais e desnuda a essência destrutiva de seu projeto. Se, porém, desiste de materializar sua ruptura e rende-se ao establishment, torna-se uma espécie de Michel Temer sufragado. Seria um triste fim para fenômeno tão efusivo.