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Nelson Motta: Sonho Meu, um samba romântico e político de Ivone Lara

Não faltam razões para celebrar Dona Ivone Lara (1922-2019). Neste mês de abril, completam-se 97 anos do nascimento e um ano da morte da “grande dama do samba”. Para marcar essas efemérides, o Prosa, Poesia e Arte reproduz um artigo do crítico musical Nelson Motta. De forma breve, mas contundente, Nelsinho relembra as origens e o sucesso de Sonho Meu, a obra-prima da sambista carioca. Confira.

Dona Ivone Lara - Fernando Santos
Sonho Meu, um samba romântico e político de Ivone Lara

Por Nelson Motta*

Como conta Maria Bethânia, é uma história que tem algo de sonho, mas aconteceu. Em 1978, buscando canções para seu novo disco, conheceu Dona Ivone Lara na casa da violonista Rosinha de Valença, em Copacabana. Na saída, já caminhando para a porta, depois de ter mostrado alguns de seus sambas inéditos, Ivone Lara cantarolou uma pequena melodia que atraiu a atenção da baiana.

Já então lendária compositora, primeira mulher a ser aceita na ala de compositores de uma escola de samba (Império Serrano), explicou que aquele era apenas um trecho, só tinha seus versos iniciais, o refrão “Sonho meu, sonho meu / Vai buscar quem mora longe, sonho meu”. Bethânia ficou encantada. No mesmo dia, assim que chegou em casa, Dona Ivone (1922-2018) ligou para o parceiro Délcio Carvalho (1939-2013) e o chamou para completar o samba que iria se tornar um dos maiores sucessos daquele ano.

Gravado semanas depois, em um dueto com Gal Costa, Sonho Meu brilhou no álbum Álibi e logo caiu na boca do povo. Samba romântico e apaixonado, tem na letra também um viés político, em referência cifrada aos muitos exilados que só puderam voltar ao Brasil após a Lei da Anistia, promulgada em agosto de 1979. Desde então, Sonho Meu tem sido um número obrigatório no repertório de Bethânia, vive nas paradas sentimentais de muita gente e nas vozes de centenas de intérpretes mundo afora.

O sucesso também abriu as portas para Dona Ivone, que havia se aposentado como enfermeira – especializada em terapia ocupacional, por muitos anos da equipe da doutora Nise da Silveira, a pioneira no uso da arte no tratamento psiquiátrico. Graças a Sonho Meu, assinou um contrato para gravar seu primeiro disco solo, Samba, Minha Verdade, Minha Raiz, e pôde se dedicar de corpo e alma à carreira de compositora. Outro sonho que virou realidade.

* Nelson Motta é jornalista, compositor e crítico de música

[Artigo publicado originalmente no livro 101 Canções que
Tocaram o Brasil, de Nelson Motta (Estação Brasil, 2016).]

Sonho Meu
(Dona Ivone Lara e Délcio Carvalho)
Sonho meu, sonho meu
Vai buscar quem mora longe, sonho meu
Sonho meu, sonho meu
Vai buscar quem mora longe, sonho meu

Vai mostrar esta saudade, sonho meu
Com a sua liberdade, sonho meu
No meu céu a estrela guia se perdeu
E a madrugada fria só me traz melancolia
Sonho meu

Sinto o canto da noite na boca do vento
Fazer a dança das flores no meu pensamento
Traz a pureza de um samba
Sentido, marcado de mágoas de amor
Um samba que mexe o corpo da gente
E o vento vadio embalando a flor

Traz a pureza de um samba
Sentido, marcado de mágoas de amor
Um samba que mexe o corpo da gente
E o vento vadio embalando a flor
Sonho meu