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 Da tragédia aos Cadernos Bestiais: quatro poemas de Claudio Daniel

O livro Cadernos Bestiais, de Claudio Daniel, é uma coleção de poemas escritos entre 2013 e 2018, em meio aos trágicos acontecimentos no Brasil que culminam no golpe de 2016 contra a presidenta Dilma Rousseff e na ascensão da extrema-direita ao poder. O Prosa, Poesia e Arte apresenta hoje quatro dessas composições.

Cadernos Bestiais - Barbara Gael

Os poemas de Cadernos Bestiais foram publicados, inicialmente, em três plaquetes, com projeto de arte e edição de Francisco de Santos, poeta, artista plástico e editor da Lumme. Mas é a reunião de todos as poesias em um único volume que permite a visão de conjunto desse diário poético, ou breviário da tragédia brasileira.

A esses versos, foi acrescentado o poema Ponta Cega, dedicado ao ex-presidente – e hoje preso político – Luiz Luís Inácio Lulas da Silva. Há também traduções feitas para o inglês de algumas das peças da coletânea, realizadas por Sean Patrick Negus, com revisão de Scheila Sodré.

“Nosso propósito, nessa série de composições, não foi o de rivalizar com o jornalismo (que não existe mais), a historiografia ou a sociologia, mas, sim, o de produzir poesia – suja, impura, manchada de história. Uma poesia que não abdica dos jogos de linguagem, da imaginação, da experimentação”, diz Claudio Daniel, que cita o poeta alemão Bertolt Brecht: “Nos tempos sombrios / se cantará também? / Se cantará também / sobre os / tempos sombrios”.

Paulistano, nascido em 1962, Claudio Daniel, pseudônimo de Claudio Alexandre de Barros Teixeira, é poeta, tradutor e ensaísta. Formado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, é mestre e doutor em Literatura Portuguesa pela USP, além de pós-doutor em Teoria Literária pela UFMG. Com passagem profissional pela Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura e pelo Centro Cultural São Paulo, foi colunista da revista Cult. Hoje, é editor da revista eletrônica de poesia e debates Zunái e do blog Cantar a Pele de Lontra.

A obra poética de Claudio Daniel já foi traduzida para o inglês, espanhol, alemão e japonês. “Cláudio Daniel é o nome dele. Poeta que admiro, um ourives no apuro estético, um conteúdo pulsante com os dilemas de nosso tempo”, registrou, nesta semana, o poeta e dirigente do PCdoB Adalberto Monteiro, ao participar do lançamento de dois livros de Claudio: Portão 7 e o próprio Cadernos Bestiais. Para Adalberto, as duas publicações correspondem a “uma chuva de meteoros para o espanto dos olhos e o encanto da alma”.

Um dos poemas presentes em Cadernos Bestiais é Retrato IV, homenagem a Francisca das Chagas Silva, dirigente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Miranda do Norte, no Maranhão, assassinada a mando de fazendeiros da região. A execução teve requintes de crueldade: seu corpo foi encontrado nu, com sinais de estupro, estrangulamento e perfurações.

Retrato IV

Pedras queimadas
na crueza
do abandono
tuas disformes formas
marcadas
a cutelo.
Pele dispersa
arroxeada
de corpo inânime
esfiapada
entremostrada
em febras
de açougue.
Despejada
na lama,
como detrito:
um aviso
do quebra-ossos
para que ninguém
reclame.
Mundo
desmundo
de mortes
emudecidas
onde olhos
se fecham
para o flagelo
mais cegos
que a noite
mais cegos
que a morte
de indistintas
estrelas —
apenas os corvos
crocitam,
apenas os corvos
— cachorros do céu —
desenham,
com suas vozes
desconexas
a cena do mais
absoluto
horror.

Duas outras composições evocam a memória de brasileiros mortos de modo violento e arbitrário. Retrato V tem como tema os trabalhadores rurais sem terra assassinados em abril de 2016 no Acampamento Dom Tomás Balduíno, no Paraná. Já Retrato VII recorda o massacre de 19 jovens pobres e negros ocorrido em agosto de 2015 em Barueri e Osasco, no estado de São Paulo, por policiais militares.

Retrato V

Entranhados no terror.
Estirados na terra.
Suas mãos terrosas.
Suas bocas aterradas.
Seus olhos, fundas covas.
Seus olhos, gritos óticos.
Abatidos como feras
pelos furiosos.
Abatidos como párias
pelos paranoicos.
Porque nascem da terra.
Porque vivem da terra.
Porque se multiplicam,
tumultuários, e sua voz
é a voz vermelha da terra.

Retrato VII

Dezenove cabeças de ninguém:
cabeças-
de-corvo,
de noite-
desnoite,
de lua-
nanquim.
Abatidos a tiros:
noite
negra-
vermelha,
noite
muda-
estridente
— extermínio.
carmim.
Linhas móveis
multiplicam
luzes:
indistintas
estrelas
no desfazimento
do breu.
Os que somem
sem deixar
vestígios;
os que calam
sobre mortes
anônimas.
Sim:
vivemos
no tempo
dos invisíveis,
no tempo
descolorido
dos surdos-mudos.
A mutabilidade
dos corpos,
reconfiguráveis.
As estruturas
de poder
mimetizadas
em abismo.
A indiferença
ante os dezenove
desalinhados
corpos
em Barueri
e Osasco.
Limo recobre
qualquer hipótese
de legalidade.
Sim, houve
um massacre:
todos nós
somos culpados.

Mas não há apenas mártires nos versos de Cadernos Bestiais. Mais otimista, Retrato VIII celebra os estudantes secundaristas que ocuparam mais de mil escolas públicas no Brasil, em 2016, em protesto contra a aprovação da PEC 55 no Senado, que congela por 20 anos os investimentos públicos na educação e na saúde.

Retrato VIII

Tudo treva
— tudo seca,
surda treva.
Tempo-
tarântula.
Tempo-
tentáculo,
de cortes
e cutelos.
Tudo fratura,
tudo vértebras
partidas.
Tempo-
esqueleto (morcego).
Tempo-
tonfa-capacete-
escudo.
Tempo-spray-
de-pimenta
e balas
de borracha.
Tempo-
tempestade.
Excessivos dias
de muros
cercados.
Excessivos dias
de tumores
e temores.
Excessivos dias
em que PENSAR
É SABER
LUTAR:
lição escrita
nas ruas,
lição de pés,
mãos, bocas,
e mentes
irmanadas,
encarnadas,
encantadas.
Ocupem
as escolas.
Ocupem
as letras
do alfabeto.
Ocupem
os números,
do zero
ao infinito.
Ocupem
as cores
do arco-íris.
Ocupem
os afetos,
do amor
à fúria.
Ocupem
o Sol
e a Lua.
Ocupem
tudo, tudo
por todos,
por vocês
e por mim.

 
O livro Cadernos Bestiais pode ser adquirido pelos e-mails vendas@lumeeditor.com ou info@lumeeditor.com.