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Elder Vieira: Maria e o boi 

O Prosa, Poesia e Arte publica a seguir a crônica “Maria e o boi”, de Elder Vieira, escritor, funcionário do Ministério da Cultura e membro da direção estadual do PCdoB-SP. Colaborador frequente desta seção, Elder escreveu, entre outros textos, o artigo “Os cem anos da poderosa poesia de Cecília Meireles”. Confira sua crônica.

Boi vermelho
Maria e o boi

Por Elder Vieira

Há quanto tempo Maria está ali, a lavar roupa? Não saberia dizer. Nem poderia, que o céu foi assim esmorecendo sem que desse por isso.

Torce a última peça, desenrola-a em sacudidelas curtas e enérgicas, joga-a dentro da bacia, reúne os apetrechos. Tudo por cima da rodilha de pano sobre a cabeça, lá vai a moça com a carga equilibrada, caminho de casa.

Já andado um bom pedaço, estaca: um touro aponta no alto da ladeira. Vem bufando, locomotiva de chifres; picadores no encalço.

– Virgem santíssima… – murmura.

Maria olha pra trás: um estirão até o açude. Olha pros lados: cercas e cercas de arame farpado – os cabos tão juntinhos que mal passa um pensamento.

– E a roupa, meu deus?!… – murmura segunda vez.

O bicho já vinha, pernas abertas, a meia rampa; os olhos, duas faíscas. Num instante, todo o lavado e quarado mistura-se à terra num mesmo barro. A menina, desabalada, corre em demanda duma saída na vastidão obstada – imensos descampados confinados, proibidos à sua salvação. Quase ouve o fungar da fera. O pânico, antes motor, converte-se em freio. As pernas desfalecem. A qualquer instante, logo já, seria o impacto; o corpo franzino jogado longe. Ou, então, espetado nas aspas assassinas. Quinze anos perdidos numa disparada de besta.

Não sabe o quanto esteve assim a pensar. Nem pôde atinar como foi parar do outro lado da cerca. Só lembra que, no instante em que rasgou vestido e carne, sentiu o vento do touro nos fundilhos e ouviu um tropel de patas e os gritos dos vaqueiros.

Nas costas, arde-lhe um rastro de fogo. Nas farpas do arame, a tira de chita; no chão, embaixo, gotas de sangue. Meio zonza, letárgica, caminha pelo pasto, rente ao cercado, até a altura das roupas pisadas e dispersas na estrada. Com vagar e cuidado, afasta os fios tensos e paralelos, passa por entre eles e vai recolher, lágrimas descendo, as peças enlameadas.

Volta para lavá-las? Não mais havia dia. Estrelas apontam aqui e ali. Na sombra que se estende, morre a cor; nascem o coro de grilos e o concerto das jias.

Chega à porta de casa exausta, transida de dor. Decerto, mãe vai me comer na taca: chegar a essa hora, e ainda com a roupa assim, apodrecida de terra!?…

– Minha filha, o que é isso?! O que lhe aconteceu?

Maria desaba. Não sabe se de autopiedade, medo, defesa prévia, um choro doído planta-a à entrada da sala, bacia apoiada na anca direita.

A mãe, suave, toma-lhe o peso e o entrega à mais nova. Terna, abraça a cabeça da filha e faz que a nina:

– Xi, xi, xi. Não chore. Que foi? Me conte.

Depois de tudo dito e contado; as costas tratadas à mastruz, Maria dorme – cabeça no colo da mãe. Sonha com o touro, é claro.

Diz que vinha por uma rua. Quebra à esquerda, esbarra com aquele boi, enorme de vermelho, parado no meio da viela estreita, empatando o tempo. Depois do susto, faz menção de voltar por onde veio, mas o olho, o porte, a cor, o não sei que diga do bicho estatuam-na ali, com a tarde por cima de tudo.

O boi avança, manso. Chega a baba e a narina de junto do vestido florido. Na altura do seio de Maria, expele ar quente pelas ventas.

Maria arde. Uma seiva derrete-se-lhe por dentro e revigora seus talos extremes. Um líquido quente lhe escorre dos olhos e, por um instante, ela não cabe mais nas vestes. Num acesso, rasga-as em tiras e vai postar-se sob o animal, pernas e braços abertos. O bicho, assim convocado, evola-se em poalha rubra, transmuda-se em rodamunho bem sobre o umbigo da menina e, num espoco, desfaz-se em chuva de sangue por sobre seu corpo.

Muitos ofegos depois, Maria se ergue. Assim nua e vermelha, vai pela viela deserta. Ao cabo, fica uma porta, que, embora não sendo, era a de sua casa. Entra, banha-se, veste seu melhor conjunto de domingo, perfuma-se e dirige-se à bodega de Seu Dino, anunciar algo não alcança o que seja, mas que intui urgente, inadiável.

Ato contínuo, já não está mais a caminho da venda: vai pelos pastos, escanchada na fera, braços abertos, vestida de domingo, entoando, entre risos, um aboio:

– Êh-êh-êh-êh, êh-êh, êh-êh, boi lá aê! Êh, boi!