Brexit passou da validade – que dinâmicas se avistam?

Pode haver quem considere que o impasse no Reino Unido sobre a saída da União Europeia (UE), Brexit, reflita um caos na situação política britânica, em desalento. A tormenta intensificou-se devido à aproximação do prazo da saída, 29 de março, prorrogado para 12 de abril. A mídia, que trata do tema como trata de um escândalo, veiculou incessantemente quase pirotécnicos debates. Mas as pautas menos noticiadas são as que a esquerda pretende trazer à tona.

Por Moara Crivelente*

Brexit PC

Em fevereiro, no I21, abordamos a dinâmica intra- e interpartidária que em suma reflete a luta por e contra o reemergir de um Trabalhismo sob a liderança de Jeremy Corbyn que possa vencer as eleições. Corbyn é cercado pela direita, conservadores e neoliberais, inclusive em seu próprio partido, com controvérsias distrativas que alguns parlamentares usaram para justificar sua desfiliação do Partido Trabalhista —grande parte, descontente com a guinada para a esquerda.

Com foco na saída da UE, o que deve receber atenção mais qualificada são as questões estruturais que ela suscita. A esquerda, inclusive Corbyn, critica o bloco pelo constrangimento que impõe à soberania nacional, sua política imperialista e beligerante e os impactos das políticas neoliberais ditadas do Continente —especialmente de Bruxelas e Frankfurt, sedes das principais instituições europeias— que afetam diretamente as vidas dos trabalhadores britânicos. Ainda assim, seja sob o comando dos Conservadores, seja sob o “Novo Trabalhismo” liderado por Tony Blair e Gordon Brown, ninguém pode isentar os sucessivos governos britânicos do descalabro a que a UE lançou os trabalhadores europeus, sobretudo durante os anos mais graves da crise que eclodia por volta de 2007, menos ainda da militarização da UE ou das agressões mundo afora —com ênfase para o Afeganistão, Iraque, Líbia e Síria, em que o Reino Unido (RU) desempenha papel relevante.

Mas dois anos após a notificação ao Conselho Europeu de que o RU deixaria o bloco, a Câmara dos Comuns britânica rechaçou pela terceira vez o acordo negociado pela primeira-ministra Conservadora Theresa May. É inevitável lembrar da triste figura do ex-premiê Conservador David Cameron em sua saída de cena, desolado porque seu blefe deu errado. Pretensioso, Cameron instigou o processo que culminou no referendo de 2016 e demitiu-se porque o povo votou contra as suas expectativas, pela saída da UE.

Em declaração de 29 de março, o Conselho Europeu considera que o cenário de uma saída sem acordo, com que o povo britânico tem sido aterrorizado, é bastante provável. “A UE tem se preparado para isso desde dezembro de 2017” e “vai se manter unida” —sem o RU, claro. “Os benefícios do Acordo de Retirada, inclusive um período de transição, sob nenhuma circunstância serão replicados num cenário ‘sem acordo’. Pequenos acordos setoriais não são uma opção”, afirma o Conselho Europeu.

Alguns têm defendido neste cenário uma saída ordenada pelas regras da Organização Mundial do Comércio. O Partido Trabalhista defende a manutenção de uma união aduaneira com a UE, o que pretende negociar formalmente ao chegar ao Governo. A união aduaneira hoje inclui os 28 estados membros e Mônaco; o bloco tem ainda acordos do tipo com não-membros como a Turquia, Andorra e San Marino.

Brexit no Parlamento

Três votações recentes conferem ao Brexit de May rechaço estrondoso. O impasse reforçado na sexta-feira (29), quando o acordo foi rejeitado por 344 a 286 votos, não foi um desfecho. Em decisão de 22 de março, o Conselho Europeu estendeu o prazo, junto com a agonia do Governo May e dos britânicos, para 12 de abril. Segundo o órgão, qualquer outra extensão deverá ser fundamentada e unanimemente aceita pelos outros 27 membros da UE. A premiê deve participar de uma cúpula europeia extraordinária em 10 de abril e, se pedir nova extensão, o RU deverá participar das eleições europeias de maio.

Na sexta (29), May disse haver falta de disposição dos parlamentares para uma “saída ordeira”: A Câmara já “rejeitou uma saída sem acordo, rejeitou o cancelamento da saída, rejeitou todas as variações do acordo sobre a mesa e, hoje, rejeitou a aprovação do acordo de retirada e a continuidade do processo no futuro”. Jeremy Corbyn respondeu que a premiê deve aceitar o rechaço da Câmara ao Brexit que oferece e disse que os parlamentares têm a “responsabilidade de encontrar uma maioria por um acordo melhor para todo o povo deste país”.

Corbyn defende a demissão do governo May e a antecipação das Eleições Gerais, previstas para 2022. May havia prometido que se demitiria caso o acordo fosse aprovado, para assegurar apoio de parlamentares do seu partido, inclusive conhecidos defensores da saída como Boris Johnson, chanceler entre 2016 e 2018, que na sexta mudou seu voto para apoiar a premiê. Ou seja, ela não sai sem condicionar o futuro, que seguiria sob um governo Conservador, encarregado da implementação do acordo. Além disso, uma quarta votação, a segunda “indicativa”, deve ocorrer nesta segunda (1º/04), mas May não conseguiu angariar mais apoio, como os votos que buscava dos 10 parlamentares do Partido Democrático Unionista norte-irlandês, conservador.

Entre os principais tópicos estão a permanência do RU numa união aduaneira prolongada com a UE e a dita “fronteira europeia”. O tema assume maior relevo dada a abordagem geral à questão dos migrantes e refugiados em termos securitários e à preocupação pela circulação de mercadorias. O ponto nodal da controvérsia é a fronteira entre Irlanda do Norte, parte do Reino Unido, e a República da Irlanda, que seguirá na UE. A fronteira é gerida pelo Acordo de Belfast —ou Acordo de Sexta-Feira Santa— de 1998 que pôs termo a um conflito de três décadas. Um dos seus pilares é a ampla cooperação transfronteiriça entre Irlanda do Norte e República da Irlanda e a possibilidade facilitada de trânsito de uma nação dividida em dois países. Assim, alertam os envolvidos, a estabilidade da Irlanda depende do Brexit alcançado.

Os estridentes discursos securitários remetem aos confrontos que, ironicamente, opuseram os que defendem a saída da Irlanda do Norte do RU para voltar a se juntar à República da Irlanda e os “unionistas”, que defendem a permanência. O Norte da Irlanda destacou-se do restante para integrar o RU em 1921, quando culminou a guerra pela independência irlandesa. Já durante o conflito de 1968-1998, o governo britânico chegou a enviar tropas e ocupar a Irlanda do Norte “para restaurar a ordem”, em confronto direto com o Exército Republicano Irlandês (IRA). Mais de 3.500 pessoas morreram. Portanto, para os burocratas de Bruxelas a questão pode ser técnica e para alguns, securitária, mas para irlandeses e britânicos, é mais grave. Uma importante salvaguarda —em inglês, backstop— é debatida para contornar a eventual saída sem acordo.

Líder do Sinn Féin, o Partido Republicano presente no norte e no sul da ilha, Mary Lou McDonald criticou “o descaso do RU” com a situação na Irlanda, afirmando, em nota veiculada na página do partido, que os direitos, a economia e os acordos irlandeses estão em risco, classificando o Brexit de fiasco. “Temos que intensificar o planejamento para o caso de uma colisão sem acordo, com o imperativo de assegurarmos que não voltaremos a uma fronteira física, protegendo nossos acordos e os direitos dos cidadãos,” disse a presidenta do partido.

No turbilhão, questões de fundo são negligenciadas

Um foco na esquerda e, nomeadamente, na posição dos Partidos Comunistas, destaca questões fundamentais do turbilhão de declarações proferidas pelas autoridades europeias do palco montado pela mídia ao sabor do mercado, ou das críticas à e as réplicas da premiê britânica e sua trupe entre os Conservadores, enquanto o terror que se vê nas manchetes inclui estimativas do número de fábricas e empresas que devem se retirar do RU e deixar os britânicos desempregados, ou trabalhadores imigrantes forçados a voltar a seus países na distanciada Europa.

O Partido Comunista da Bretanha (PCB) vinha ponderando que muitos parlamentares “não têm intenção de permitir qualquer tipo de Brexit, nem mesmo aquele Brexit farsante oferecido pelo gabinete Tory [Conservador] e a UE,” afirmava em janeiro. Para o PCB, o governo May e vários parlamentares, assim como a Comissão Europeia, buscam manter a Bretanha sob as regras do Mercado Comum e da União Aduaneira da UE. “Estes [objetivos] obstruiriam significativamente muitas das políticas da esquerda e progressistas de um futuro governo do [Partido] Trabalhista.”

O PCB também considerou que, após a derrota de May no Parlamento em 15 de janeiro por uma margem de 230 votos, seu governo de minoria deveria ter se demitido “antes que sua estratégia duvidosa cause mais danos ao futuro da economia da Bretanha. Uma Eleição Geral deve ser realizada no início de março para que um governo Trabalhista liderado por Jeremy Corbyn possa negociar um novo conjunto de relações pós-Brexit com a UE. Se isso não puder ser alcançado a tempo, a Bretanha deve sair da UE em 29 de março sob as regras da OMC.” Mas, ainda, nada.

O Partido Comunista da Bretanha Marxista-Leninista (PCBML) também exigia o cumprimento do prazo de 29 de março para a saída da UE em respeito ao resultado do referendo. O partido considera que May colocou os britânicos numa rota de colisão e a democracia sofre um golpe. Em 25 de março, publicou editorial condenando a renegociação do prazo que May fez em sua viagem a Bruxelas. Para o PCBML, ela “finalmente abandonou o fingimento de que pretende cumprir o Brexit” e “mostrou sua intenção de deixar que este parlamento pró-permanência trace o curso, sabendo bem onde ele levará.”

A extensão do prazo —prevista no Artigo 50 do Tratado de Lisboa da UE sobre os procedimentos para a retirada unilateral de um membro— não significaria a renegociação do acordo, juraram há tempos os mandatários europeus. Diante dos prognósticos quase lúgubres para a situação do RU aventados por eles e outros defensores do estado de coisas, uma petição circulada para demandar ao governo que revogue a decisão pelo Brexit alcançou seis milhões de assinaturas, noticia The Guadian.

Comunistas no Reino Unido e no restante da Europa têm denunciado a estratégia da UE de imposição das regras e o que parece um iminente atropelo da vontade dos britânicos que votaram em 2016 pela saída. Em janeiro, o Partido Comunista Português condenou a “campanha política e ideológica que tenta apresentar a legítima decisão de um país de saída da União Europeia como algo ‘inevitavelmente desastroso’”. O Partido Comunista Francês afirmou: “A demagogia, combinada com as baixas manobras parlamentares de todo tipo, do Governo conservador de Theresa May, leva o Reino Unido ao caos político e abre a porta a novos retrocessos para os povos britânico e europeu. É óbvio que May não tem mais legitimidade para negociar um acordo de saída da UE. Os conservadores britânicos estão apostando alto, exigindo um Brexit duro, sem acordo com a UE, para aprofundar a liberalização de sua economia. As primeiras vítimas do caos na Grã-Bretanha são provavelmente os trabalhadores e a classe média”, afirma em nota de 16 de janeiro.

Outros partidos europeus acompanham os comunistas britânicos nas críticas às políticas da UE que limitam cada vez mais a soberania dos seus países e condenam os trabalhadores à miséria do regime neoliberal como se tratasse de um destino manifesto.

A saída em si, ficou claro, é um projeto sob disputa. Sentimentos diversos foram mobilizados para a votação pelo Brexit e para angariar apoio das massas aos partidos que estrelam nos debates —se o termômetro fosse a mídia à época do referendo, o Brexit seria considerado um projeto de britânicos chauvinistas e xenófobos movidos aos discursos de líderes populistas.

Mas que fiquem escancaradas as críticas que há muito os comunistas e os progressistas têm feito a uma UE neoliberal, ingerencista, militarizada e imperialista é para seus mantenedores um agravo a ser punido, uma rebelião a ser desmobilizada, através da simplificação mais rasa dos motivos do voto e da deslegitimação, negligência ou sabotagem das alternativas propostas pelos progressistas. Sua chegada ao governo tem sido boicotada à custa agonizante dos trabalhadores e da soberania nacional. Nesta segunda (1º/04), espera-se, uma nova votação deve oferecer mais perspectiva.