Associação de Juízes manifesta repúdio a comemoração do golpe de 64

Em nota oficial divulgada nesta quarta-feira (27), a Associação Juízes para a Democracia (AJD), entidade não governamental e sem fins corporativos, que tem dentre seus objetivos estatutários o respeito aos valores próprios do Estado Democrático de Direito, manifesta veemente repúdio as comemoração de um golpe de Estado e uma ditadura militar ocorrida nos anos 1960 no Brasil. Para a ADJ, o "Golpe jamais pode ser festejado".

ADJ

Sob o título “Em uma democracia, um golpe jamais pode ser festejado”, a entidade repudia as manifestações no sentido de se comemorar o golpe militar de 1964.

A nota diz que "é inaceitável que um governo que se pretenda democrático exalte um período obscuro de nossa história, em que os mais comezinhos valores democráticos foram vilipendiados pelo regime imposto”.

Diz a nota que a "deposição de um presidente legitimamente eleito pelo povo, a tortura institucional, os assassinatos e os desaparecimentos perpetrados pelo Estado, o enfraquecimento do Poder Judiciário, a cassação de parlamentares, o desrespeito à liberdade de imprensa, o desprezo pelos direitos e garantias fundamentais, além de outros atos autoritários, somente devem ser lembrados com o escopo de nunca mais serem repetidos, e jamais festejados, principalmente através do patrocínio estatal", destaca a nota.

“A rigor, a Presidência da República faz apologia a um fato histórico que, na atual ordem constitucional, é descrita como crime imprescritível e inafiançável nos termos do artigo 5, XLIV da Constituição de 1988”, afirma a entidade.

Segue a íntegra abaxo:

A Associação Juízes para a Democracia (AJD), entidade não governamental e sem fins corporativos, que tem dentre seus objetivos estatutários o respeito aos valores próprios do Estado Democrático de Direito, vem, diante das manifestações estatais no sentido de se comemorar o golpe de 1964, manifestar seu veemente repúdio ao ato.

Aproxima-se a data na qual, em 1964, um golpe militar instituiu uma longa ditadura civil-militar no Brasil. O atual governo, segundo informou o porta-voz da presidência, Otávio Rêgo Barros, pretende realizar as “comemorações devidas” com relação ao 31 de março de 1964, cujos eventos resultaram no golpe civil-militar de 1º de abril de 1964.

Na data de 1º de abril de 1964, as forças armadas assumiam o governo brasileiro, no que chamaram de “revolução”, sob o pretenso fundamento de uma “ameaça comunista” que justificaria a instituição de uma nova ordem de cassação de liberdades e direitos.

Por ironia, a data é popularmente conhecida como o “dia da mentira”, que fez com que os apoiadores do golpe simplesmente adequassem o evento histórico para o dia anterior: o 31 de março que agora se pretende celebrar.

A data está longe de ser a única imprecisão histórica que o atual Presidente da República comete. Não houve revolução, mas um golpe civil-militar que destituiu o presidente democraticamente eleito, João Goulart. Não havia ameaça comunista, como já provaram documentos oficiais como o relatório da Comissão Nacional da Verdade e diversos historiadores.

Em 1964, as forças que promoveram o golpe civil militar precisaram reeditar a história para adequar à narrativa que lhes permitiu tomar de assalto o poder, o quebrar a ordem constitucional vigente.

Um governo pretensamente democrático não pode exaltar uma data que simboliza o fim da democracia no Brasil, que passou a ser governado por uma ditadura durante mais de duas décadas.

É inaceitável que um governo que se pretenda democrático exalte um período obscuro de nossa história, em que os mais comezinhos valores democráticos foram vilipendiados pelo regime imposto.

A deposição de um presidente legitimamente eleito pelo povo, a tortura institucional, os assassinatos e os desaparecimentos perpetrados pelo Estado, o enfraquecimento do Poder Judiciário, a cassação de parlamentares, o desrespeito à liberdade de imprensa, o desprezo pelos direitos e garantias fundamentais, além de outros atos autoritários, somente devem ser lembrados com o escopo de nunca mais serem repetidos, e jamais festejados, principalmente através do patrocínio estatal.

Ressalte-se que a sistemática política de violação de direitos e extermínio de opositores da ditadura impôs ao Brasil duas condenações pela Corte Interamericana de Direitos Humanos ao julgar os casos Vladimir Herzog e Gomes Lund.

A comemoração institucional do golpe de 1964, além de ser mais um episódio vergonhoso da nossa história, é um ato tendente ao enfraquecimento da democracia. A rigor, a Presidência da República faz apologia a um fato histórico que,na atual ordem constitucional, é descrita como crime imprescritível e inafiançável nos termos do artigo 5, XLIV da Constituição de 1988.

Em última instância, a celebração proposta pelo Presidente é desrespeitosa e atinge os direitos de honra e imagem das/os cidadã(o)s que reconhecidamente sofreram com as perseguições, violências, tortura, desaparecimentos forçados durante a ditadura civil-militar e de suas famílias.

Ao celebrar o golpe, o Presidente eleito vale-se da mesma prática utilizada em 1964. Corrompe a história num revisionismo infundado para apagar da memória institucional e coletiva a lembrança dos direitos que foram suprimidos e a luta dos que resistiram.

Privar um povo de sua história, da memória e da verdade é um ato de tirania de um governo que macula o passado para tentar usurpa-lhe do futuro.

O regime democrático é uma frágil conquista civilizatória, dependendo sua perenidade de sua intransigente e constante defesa por todos aqueles que com ele tem compromisso.

Inexiste outro caminho para a convivência pacífica dos indivíduos, da pluralidade de ideias e da construção de uma sociedade livre, justa e solidária, se não for através da democracia. Um golpe, que é a antítese de sua essência, deve ser execrado e jamais comemorado por um Estado que pretende ser classificado como Democrático de Direito.

Por essas razões, a Associação Juízes para a Democracia (AJD) manifesta veementemente seu repúdio contra a comemoração estatal do golpe de 1964, ato que viola e enfraquece o Estado Democrático de Direito e conclama todas/as/os seus associadas/os e todas/os que prezam pela democracia a manifestar-se ,de todas as formas possíveis, pelo direito à memória, à verdade e ao futuro da democracia brasileira.

São Paulo, 27 de março de 2019.