Marielle e a gênese política dos Bolsonaro

Procurando se distanciar das incômodas revelações que o caso Marielle traz à tona, Bolsonaro vem dando uma série de declarações que não resistem ao olhar do observador mais desatento. Afirma que “só descobri que ele morava lá depois que as notícias se tornaram públicas”, referindo-se ao agora indesejável vizinho.

Por Jorge Gregory*

Caso mairelle - Reprodução da Internet

Por mais reservado e discreto que fosse o sargento, alguém que anda com perna mecânica e que teve suas fuças por diversas vezes estampadas nos meios de comunicação devido ao atentado sofrido e ao envolvimento com contraventores e milicianos, Ronnie Lessa jamais passaria desapercebido pela vizinhança. Muito menos passaria desapercebido por uma família cujo o patriarca pedia votos para deputado federal e na última eleição para presidente, um filho para deputado estadual e depois para senador e outro para vereador. Mesmo para o mais inexperiente político, o voto da vizinhança é sempre precioso e cultivado com maior esmero.

Mas as relações são mais profundas e entende-las nos remete necessariamente aos tempos da ditadura e a entrada de Jair Bolsonaro na política. Alguém já se perguntou como um oficial do Exército de baixa patente, vindo de uma cidadezinha do interior de São Paulo, morando a poucos anos no Rio de Janeiro, consegue ser eleito vereador em 1988 e deputado federal em 1990, sendo o candidato mais votado? Obviamente não foi com o apoio de seus camaradas de caserna, visto que os efetivos das forças armadas são compostos fundamentalmente por indivíduos em trânsito que, portanto, não servem como base eleitoral.

Por outro lado, existência de indivíduos que extorquem empresários em troca de proteção e que obrigam delinquentes a partilhar o resultado de delitos nos aparatos policiais (civil e militar) não é absolutamente nenhuma novidade e uma prática talvez tão antiga quanto a instituições policiais. Porém, no período da ditadura, estes indivíduos que não tinham o menor prurido para matar e torturar, eram os elementos perfeitos a serem recrutados para promoverem a perseguição e extermínio de opositores ao regime. Assim, inúmeros oficiais das polícias militares, delegados e inspetores da polícia civil passaram a receber à época treinamentos do SNI e órgãos de inteligência das Forças Armadas, para assumir a responsabilidade de organizar aparelhos paramilitares que atuassem às sombras. Estes aparelhos não só recebiam apoio e estrutura oficial do regime, como também tinham salvo conduto para extorquir empresários sob a justificativa de combater a subversão. Obviamente tais extorsões não se destinavam tão somente as ações repressivas, mas também para engordar os minguados salários que recebiam das corporações.

Ainda que tenha iniciado sua carreira militar já ao final do regime militar, admirador do Coronel Ustra e defensor da tortura e de extermínio de “comunistas”, não é difícil se inferir que o então Capitão Bolsonaro estabeleceu à época, no mínimo, estreitas relações com estes aparatos paramilitares.

Com o fim da ditadura, tais elementos, incrustrados nos aparelhos policiais, retornaram às suas velhas práticas. Boa parcela, no entanto, com a expertise adquirida durante o período de repressão, continua atuando de forma organizada, desenvolvendo suas atividades de extorsão agora sob a justificativa de combater a marginalidade. Surgem então, nos anos 80, na maioria das grandes capitais, grupos de extermínios conhecidos como esquadrões da morte. Tais organizações clandestinas ganham como aliados inúmeros comunicadores que promovem programas policiais nas rádios e televisões, com grande apelo popular, que enaltecem a ação destes paramilitares, os tratando como justiceiros, inclusive parafraseando uma expressão de um faroeste americano de que “bandido bom é bandido morto”. Dentre estes comunicadores que ganharam notoriedade podemos citar Ratinho, Datena, Cadeia, entre tantos outros.

No final dos anos 80, com este braço de grande influência popular nos meios de comunicação, os aparatos paramilitares começam também a constituir um braço político, elegendo parlamentares nos legislativos dos três níveis e, desde então, ampliando sua influência constituindo o que conhecemos hoje como as bancadas da bala. No Rio de Janeiro estes esquadrões, nos anos 90, agregam uma característica própria, que é a atuação territorial, assumindo o controle de organizações populares como as associações de moradores e passando a explorar também atividades de comercio de cargas roubadas e transporte coletivo clandestino, entre outros, além de extorsão de pequenos comerciantes e da marginalidade. Mais recentemente, não se contentando com a extorsão às quadrilhas de narcotráfico, passaram a disputar o domínio territorial com estas, assumindo também o controle do comércio e tráfico de drogas e armas em várias regiões. Ao final dos anos 90, em uma matéria que cobria a ação destes grupos em uma favela do Rio, a jornalista atribuiu-lhes a denominação de milícia e desde então passaram a ser assim conhecidos.

Voltando a 1988, fica claro aqui como um capitão reformado do exército, ilustre desconhecido na cidade do Rio, é eleito vereador e dois anos depois o deputado federal mais votado. Estes laços obscuros não foram desfeitos nestes trinta anos e sempre foram a sua principal base eleitoral. Pelo contrário, pelo que se constata da composição do gabinete do filho na ALERJ até o ano passado, tais laços se estreitaram ainda mais.

Obviamente que todas estas ligações não estabelecem necessariamente que a família Bolsonaro tenha uma relação direta com o assassinato de Marielle Franco, seja como mandantes ou como participantes. No entanto, convenhamos, para quem tem tais relações e Fabrício Queiroz como assessor e amigo pessoal, o qual tem informações privilegiadas por suas íntimas ligações com as polícias civil e militar e mais íntimas ainda com os milicianos, Jair Bolsonaro sabia muito bem que tinha Ronnie Lessa como vizinho, que papel este tinha na estrutura das milícias e que, no mínimo, era um dos principais suspeitos da execução da vereadora. Sobre isto não fica a menor dúvida e o grande problema dos Bolsonaros é que o aprofundamento das investigações escancarará ainda mais as relações da família com as milícias.