A perseguição judicial a Cristina Kirchner

Cristina Kirchner responde a sete causas na Justiça Argentina. Se especula que ao menos duas delas poderiam ter uma sentença definitiva antes do mês de julho, quando acontecem as primárias presidenciais que definirão os candidatos que concorrerão no primeiro turno contra um Mauricio Macri.

Por Victor Farinelli, na Carta Maior:

Cristina Kirchner - Getty Images

Tudo começou com uma denúncia realizada pelo empresário rural Pedro Etchebest envolvendo o procurador Carlos Stornelli e um de seus colaboradores, chamado Marcelo D´Alessio. Etchebest acusou os dois de exigir um pagamento em dinheiro para que ele fosse inocentado na investigação do chamado Caso dos Cadernos, onde a ex-presidenta Cristina Kirchner está envolvida com base a meras fotocópias das páginas de cadernos (nunca foram encontrados os cadernos originais) onde Óscar Centeno, um ex-militar e ex-motorista de Néstor Kirchner, anotava os valores de supostas propinas que a família presidencial cobrava dos empresários de diferentes ramos, mas sobretudo da construção civil.

Desde que se iniciou o processo não faltam as declarações, sobretudo de advogados das testemunhas, afirmando que os promotores pressionam os empresários para que envolvam os Kirchner em suas declarações, ou serão castigados em suas sentenças – situação que se assemelha muito a uma das acusações que se faz a respeito da Operação Lava-Jato no Brasil, onde não poucos advogados afirmam que seus clientes foram forçados a envolver Lula da Silva ou Dilma Rousseff em seus testemunhos para que a delação premiada seja considerada válida.

Mas faltava uma prova mais contundente da ação viciada dos promotores do caso, e isso só aconteceu quando Etchebest levou sua denúncia a um juizado da Província de Buenos Aires, e quando a mesma chegou à imprensa através da denúncia de Horacio Verbitsky em seu site El Cohete a la Luna.

Os três se reuniram em janeiro em um clube no balneário de Pinamar, e foi nessa ocasião que Etchebest conseguiu a maioria dos registros que apresentou como prova para acusá-los de extorsão. O empresário rural afirma que o procurador e seu parceiro disseram que seu nome constava na lista do que teriam pago supostas propinas à família Kirchner em troca de contratos com o Estado que o beneficiassem, e que logo tentaram “vender” a ele a possibilidade de declarar como “testemunha arrependida” (figura jurídica similar a um “delator premiado” no Brasil), podendo ser liberado ou ter sua pena atenuada, “se sua versão fosse condizente”. Segundo a série de provas apresentadas pelo empresário – que inclui vídeos, áudios, fotos e banners de conversas por whatsapp –, a dupla Stornelli D´Alessio atou bem entrosada para chantageá-lo.

Para que tenhamos mais presente quem é quem nessa história, podemos dizer que Carlos Stornelli é o procurador que trabalha no tribunal do juiz Claudio Bonadio, que é o que investiga a maioria dos casos onde está sendo processada a ex-presidenta Cristina Kirchner. Juntos, Bonadio e Stornelli vêm realizando um trabalho muito similar ao do ex-juiz Sérgio Moro (hoje ministro da Justiça do governo de Jair Bolsonaro) e do promotor Deltan Dallagnol no Brasil, dentro da chamada Operação Lava-Jato.

Já Marcelo D´Alessio é um caso à parte. Figura carimbada em alguns programas de televisão na Argentina, se apresentava como profissional multitarefas: advogado, investigador, piloto de aviões, instrutor de tiro e consultor da DEA (sigla em inglês da Agência Estadunidense Antidrogas) eram algumas das facetas que ele assegurava carregar em seu currículo. Concretamente, o único que se sabia é que trabalhava junto ao Ministério de Segurança da Argentina, e com alguns promotores do Ministério Público Federal – como Stornelli.

Quando a denúncia de Etchebest foi revelada, D´Alessio perdeu todo o seu relato e os seus amigos. Stornelli e Patricia Bullrich (ministra de Segurança) tentaram dizer que tinham uma mínima relação com ele, mas foram desmentidos por diferentes provas mostrando diversos casos onde trabalharam juntos e fotos nas quais se mostra que ele participou de reuniões no Ministério de Segurança convidado por Bullrich, por exemplo. O procurador Stornelli chegou a dizer que havia se encontrado com ele no máximo três vezes na vida, versão que não bate com as evidências apresentadas por Etchebest em janeiro.

Consultada por diferentes meios de comunicação argentinos, a Embaixada dos Estados Unidos em Buenos Aires emitiu um comunicado assegurando que D´Alessio jamais trabalhou para a DEA ou qualquer outra agência norte-americana.

Esta semana, quando houve a diligência da Polícia Federal argentina em sua casa, solicitada pelo juiz que investiga a denúncia por extorsão, D´Alessio tentou se negar a entregar alguns equipamentos, como computadores e gravadores, e alegando que são instrumentos de trabalho que utiliza em projetos nos que está trabalhando junto com Gustavo Arribas (diretor-geral da AFI, Agência Federal de Inteligência da Argentina) e com Daniel Santoro (jornalista ligado ao Grupo Clarín). Aliás, durante o operativo de busca e apreensão, ele chegou a pedir uma ligação a Bullrich ou a Arribas para que o ajudassem a impedir que seus equipamentos fossem confiscados, e ainda tentou intimidar os investigadores quando estes se negaram, perguntando se eles trabalhavam para o Hezbollah.

Cabe destacar que o diário Clarín chegou a publicar colunas semanais de D´Alessio sobre temas de segurança pública até o ano passado, descrevendo-o como um especialista internacional nesse tema.

A conhecida relação de D´Alessio com o Grupo Clarín não impediu que seus veículos de comunicação participassem do coro promovido pelos grandes meios de comunicação para tentar mostrar D´Alessio como um louco que não tem nenhuma relação com Stornelli, sobretudo para impedir que uma suposta irregularidade no atuar do procurador possa derrubar todo o processo de investigação contra Cristina Kirchner liderado por ele. Porém, no caso do Clarín, também existe a intenção de afirmar que o próprio meio foi enganado pelo suposto currículo do advogado, e que por isso lhe cedeu uma coluna nas páginas do periódico impresso.

Como analisou o jornalista Horacio Verbitsky, “a Lava-Jato foi o prólogo para a destituição da presidenta Dilma Rousseff, que não foi acusada de delito algum, e depois para a detenção e proscrição de Lula da Silva, por delitos que nunca foram provados, o que permitiu a chegada ao poder do obscuro ex-capitão do Exército Jair Bolsonaro, que reivindica os piores extremos da ditadura em seu país. Algo parecido acontece na Argentina, onde a causa judicial mais difundida pelos meios de comunicação tradicionais tem como objetivo impedir que Cristina Kirchner seja candidata em outubro deste ano. Por isso o caso é tão relevante, porque Stornelli é uma das principais responsáveis pelo Caso dos Cadernos, e cada vez que avançamos nas investigações descobrimos mais de sua relação com D´Alessio e a deste com outras figuras como o juiz Claudio Bonadio ou a ministra Bullrich. Relações que, se chegam a uma conclusão na linha que se trabalha atualmente, poderia enterrar definitivamente a causa antes que ela possa ter os mesmos efeitos eleitorais que a Lava-Jato teve no Brasil em 2018”.

Para completar, Verbitsky recorda que D’Alessio afirma que o governo de Macri interviu desde o princípio no Caso dos Cadernos, incluindo a sugestão de que seu tio, o escrivão Carlos D´Alessio, certificasse as cópias digitalizadas dos supostos cadernos do motorista Óscar Centeno (cujas folhas originais nunca foram mostradas). O curioso é que Carlos D´Alessio trabalha como escrivão oficial do governo argentino, nomeado por ninguém menos que o presidente Mauricio Macri.

Atualmente, Cristina Kirchner responde a sete causas na Justiça Argentina, das quais cinco estão nas mãos do juiz Claudio Bonadio, e cujas investigações são lideradas pelo próprio magistrado e pelo procurador Carlos Stornelli. Se especula que ao menos duas delas poderiam ter uma sentença definitiva antes do mês de julho, quando acontecem as primárias presidenciais que definirão os candidatos que concorrerão no primeiro turno contra um Mauricio Macri que deve tentar sua reeleição – embora essa possibilidade ainda não está confirmada, devido à forte queda na popularidade do mandatário.

O Caso dos Cadernos é um dos que está mais adiantado e que tinha maior pressão dos meios de comunicação para que se chegasse a uma condenação, levando Cristina a ter o mesmo destino do ex-presidente brasileiro Lula da Silva, em abril de 2018.

A maioria das pesquisas eleitorais realizadas nestes primeiros meses do ano mostra a ex-presidenta com uma vantagem pequena com relação ao atual governante, mas com tendência de crescimento, enquanto seu adversário vem em baixa – tanto que não há nenhuma pesquisa publicada a partir de fevereiro que coloque Macri em primeiro lugar.

Se as duas sondagens mais recentes podem servir de exemplo, na da consultoria Circuitos, Cristina Kirchner tem 33,8% e Mauricio Macri a segue com 29,4%. Na pesquisa do Instituto Imagem e Gestão Política, que mediu somente um possível cenário de segundo turno, Cristina venceria Macri por um 45% x 40%. Em ambas os casos, as pesquisadoras também fizeram uma avaliação sobre o presidente, e as duas apontaram uma desaprovação do seu governo de mais 65%.

Este artigo é baseado na série de reportagens publicadas por Horacio Verbistky, em seu site El Cohete a la Luna. São elas:

1) https://www.elcohetealaluna.com/el-contacto-con-stornelli-confirmado/
2) https://www.elcohetealaluna.com/se-cierra-el-cerco/
3) https://www.elcohetealaluna.com/la-armada-brancaleone/