Carnaval de rua: como os blocos se tornaram símbolos da democracia 

Houve um tempo em que carnaval em São Paulo era sinônimo de cidade vazia, um ótimo momento para ir a cinemas, restaurantes ou sair do Tucuruvi e chegar em Interlagos sem pegar trânsito algum. Era bom. Blocos carnavalescos já existiam aqui e ali. Depois eles começaram a se multiplicar e se espalhar pela cidade, mas ainda de forma moderada. Curte rock? Pois o Originais do Punk estava lá para você aproveitar o carnaval ao som de Cólera. Também era bom.

Por Rodrigo Casarin, no blog Página Cinco

Bloco de Carnaval

Hoje a cidade está empesteada deles. Desconfio de que chegará o momento em que cada habitante desta joça terá seu próprio bloco carnavalesco. Pior: esses blocos transformaram São Paulo num destino para turistas durante a folia de Momo e a cidade, que outrora se esvaziava, agora segue abarrotada de gente mesmo durante o feriadão. É impressionante como a combinação de música ensurdecedora, grandes aglomerações e cerveja cara, quente e quase sempre ruim faz tanto sucesso por aqui.

Apesar de tudo, um dia eu já curti esses rolês. Mesmo hoje, acho muito legal ver a cidade tomada por gente querendo se divertir. Se perdi a paciência com o furdunço, aprecio cada vez mais essa verve libertária e um tanto anárquica do carnaval de rua, que é mesmo feita para ser ocupada pela população. Aliás, se alguém deseja entender por que tantas vezes esses movimentos são apontados como exemplo do que há de democrático na sociedade, é bom ler Meu Bloco na Rua, de Rita Fernandes (Civilização Brasileira).

Rita é jornalista e uma das fundadoras do bloco carioca Imprensa que eu Gamo. No trabalho, fruto do seu mestrado na Fundação Getúlio Vargas, ela investiga como o carnaval de rua do Rio de Janeiro reviveu a partir da década de 1980, durante a redemocratização do país. Mergulhando na história de três grupos icônicos – Simpatia é Quase Amor, Barbas e Suvaco do Cristo (o nome é com “U” mesmo) –, mostra como esses movimentos podem ser encarados como uma espécie de resposta à ditadura militar que “ameaçava a livre manifestação e ao mesmo tempo continha a energia criativa da sociedade”.

“Durante o processo de redemocratização, que teve seu ápice com as Diretas Já, foram sendo construídas novas formas de participação da sociedade brasileira. As celebrações e as festas começavam a ocupar um lugar importante na cidade, traduzindo a vontade compartilhada de recuperar o espaço público, que tivera por tanto tempo seu acesso restrito. Nesse novo ambiente, nos anos 1980 os blocos de rua vão ser espaços possíveis de convivência política, mas, acima de tudo, de sociabilidade. Veremos, nos grupos desse carnaval ressurgente, sujeitos movidos por um profundo desejo de desfrutar novamente a liberdade”, registra.

A autora indica que esses blocos surgiram para que o “folião pudesse ser mais participativo, sem amarras, restrições, competições, brincar de forma mais livre, experimentar um carnaval mais participativo”, numa contraofensiva aos festejos fechados, do circuito oficial e das escolas de samba, cada vez mais megalomaníacas, espetaculosas, controladoras e, consequentemente, um tanto excludentes.

Dentre as razões para que apontemos os blocos de rua como grandes manifestações democráticas, segundo Rita, estão a abertura “à participação de qualquer pessoa, sem exigências de inscrições, pagamentos, fantasias, alas, camisetas, abadás, ou qualquer restrição à participação do folião, como cordas, carros ou áreas reservadas que possa impedir o livre ir e vir”; a “estreita ligação com seus territórios de origem, e, por isso, seus desfiles só se justificam nesses lugares, sem roteiros predeterminados pelo poder público”; e a maneira como “cantam, como em crônicas, as histórias da cidade, do país, em sambas autorais, muitas vezes pontuados pela crítica política ou social, ou por temas ligados à própria identidade”.

Por isso, mesmo ranzinzas como eu têm motivos para admirar os blocos, ainda que prefiram evitar a música alta, o fuzuê das grandes aglomerações e o purgante travestido de cerveja.