Centenário de João Goulart: a guerra do salário mínimo

Esse terceiro artigo do "Especial" sobre o centenário do ex-presidente da República João Belchior Marques Goulart comenta como ele foi forçado a se afastar do Ministério do Trabalho.

Por Osvaldo Bertolino

Goulart

O decreto do presidente Getúlio Vargas que elevou o valor do salario mínimo em cem por cento, anunciado em 1º de maio de 1954, se deu no auge dos ataques da direita a João Goulart. Ao falar do assunto, já como ex-ministro do Trabalho, ele disse que os representantes das classes conservadoras, sim, causavam agitações. Eles agrediam o presidente da República e os operários, que desejavam apenas um mínimo indispensável para viver.

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Goulart explicou que os novos níveis do salario mínimo foram fixados por comissões instituídas nos estados, seguindo preceitos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). “O aumento do salário para o trabalhador, para servir ao militar, civil ou qualquer outra categoria, deveria ser estudado sempre na base do lucro verificado no nosso país, especialmente por grandes empresas em que o imposto de renda está demonstrando que se multiplicam à medida que os dias passam”, detalhou.

Pedido de demissão

Getúlio Vargas, ao comentar o papel de Goulart nesse processo, disse que ele representava o seu pensamento no Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e os que o apoiavam deveriam fazê-lo como se fosse o  próprio presidente. Quando se afastou do Ministério do Trabalho, depois uma violenta campanha da direita, Goulart disse que deixaria o cargo para prosseguir a luta ao lado dos trabalhadores, “mudando apenas de trincheira”. “Fiquem certos os trabalhadores que não trairei os princípios por mim defendidos à frente do Ministério do Trabalho”, afirmou. Ele havia reassumido a presidência do PTB.

Ele entregou a Vargas, junto com o pedido de afastamento, o texto da nova lei do salário mínimo e uma carta com o histórico da sua passagem pelo governo e os motivos do seu pedido de demissão. Goulart explicou que colocou o cargo à disposição do presidente para não lhe criar embaraços, decisão que tomou imediatamente após ter surgido o “memorial dos coronéis”, um documento de forte viés golpista, assinado por 42 coronéis e 39 tenentes-coronéis e encaminhado ao ministro da Guerra, general Espírito Santo Cardoso – também exonerado por Vargas –, e ao Alto Comando das Forças Armadas.

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O texto, redigido em tom belicoso, pediu diferenciação entre os salários de militares e civis, alegando péssimas condições de trabalho na caserna, e repetiu o discurso dos conspiradores ao falar de malversações de dinheiro público, corrupção e “perigo comunista”. Era esse o modelo do discurso que se levantou com força assim que Goulart se aproximou do governo, primeiro como presidente do PTB e depois como ministro do Trabalho. Agora, com essa medida de grande repercussão entre o povo, ele estava sendo emparedado por um seguimento militar que pregava o golpismo sem meia palavras.

Onda golpsita

Goulart, por sua vez, nunca se intimidou e não vacilava quando falava do papel dos trabalhadores numa sociedade moderna. Em sua mensagem de Natal de 1953 ele disse que apresentava sua felicitação “àqueles que são, sem sombra de dúvida, diretamente responsáveis e construtores da grandeza e do progresso do Brasil – os trabalhadores”. “Nessa feliz oportunidade quero, publicamente, testemunhar o meu profundo respeito e confiança no movimento operário e nas suas organizações, certo que deles depende, em grande parte, a conquista da harmonia e da verdadeira paz social. Ninguém ignora hoje que a estabilidade social está definitivamente ligada à classe trabalhadora. Da sua força, união e coesão dependem, diretamente, as nossas próprias instituições – numa palavra, depende o próprio regime democrático”, falou.

Quando a onda golpista começou a ganhar volume, Goulart disse que aquela campanha decorria da harmonia social que ele conseguiu estabelecer entre trabalhadores e patrões. “Acusam-me porque durante a minha gestão ocorreram duas greves no país. Mas silenciam a respeito de setenta acordos celebrados sob a minha inspiração entre patrões e operários. Que representam esses acordos senão um grande esforço no sentido de conciliação entre as classes sociais?”, diagnosticou.

Goulart enfrentava o “sindicato da mentira” – os jornalões de oposição, expressão cunhada pelo jornal getulista Última Hora – com contundência. A companha movida contra ele era de “conhecidas correntes da oposição, cujos interesses se alimentam, via de regra, no infortúnio e no sacrifício popular”. “Sou daqueles que acreditam sinceramente que o trabalhador brasileiro, para solucionar os seus problemas, não necessita recorrer à violência ou à ilegalidade, bastando apenas exercitar as prerrogativas que lhe conferem o próprio regime democrático vigente no país”, afirmou.

Quarteladas e masorcas

Goulart também rebateu com firmeza os que o chamavam de “peronista ou comunista”. “Sinto a consciência tranquila na ação honesta que venho desenvolvendo à frente da pasta que me foi confiada pelo iminente presidente Getúlio Vargas”, enfatizou. Circulavam nos jornais rumores de que ele seria intermediário num movimento político de âmbito nacional, artuiculado com os trabalhadoraés e com a colaboração de altos círculos militares, para dar um golpe de Estado.

Diziam que a sua presença no governo constituia uma ameaça ao regime democrático. “À falta de qualquer fato concreto, levantam-se contra mim sucessivas ondas de palavrório vazio, vislumbrandio intenções subversivas nos atos mais rotineiros da minha administração. É verdade que eu poderia não atender aos trabalhadores, deixando-os entregues à própria sorte. Poderia, ao invés de permanecer até tarde no meu gabinete, perambular pelas reuniões elegantes, trocando homenagens com os felizes detentores do poder econômico”, rebateu.

Goulart também disse que aqueles que o acusavam eram justamente os especialistas “em quarteladas e masorcas, justamente aqueles que inspiram e mesmo tomaram parte ativa em muitas das já verificadas no país”. “Quanto a mim, jamais estive envolvido, direta ou indiretamente, em aventuras dessa natureza. Ademais, não faço às nossas Forças Armadas a injustiça de considerá-las a serviço de outra causa que não seja a defesa da perenidade das instituições democráticas”, afirmou.