Celso Amorim sobre Venezuela: “Amanhã pode ser aqui”

Em entrevista ao blog do jornalista Jamil Chade, do UOL, o ex-chanceler Celso Amorim faz uma avaliação da política externa do governo de Jair Bolsonaro e alerta para os riscos de uma intervenção americana na Venezuela. "Uma mudança imposta ou estimulada de fora, inclusive com a ameaça do uso da força, é ilegítima e inaceitável. Hoje é lá, amanhã pode ser aqui", destacou o embaixador.

O ex-chanceler Celso Amorim durante entrevista para o UOL, em 2017 - (Bruna Prado/UOL/Folhapress)

O diplomata conduziu o Itamaraty entre 2003 e 2011 e, no governo de Dilma Rousseff, ocupou ainda a pasta da Defesa. Eis os principais trechos da entrevista:

Durante a campanha eleitoral, em 2018, a política externa praticamente não existiu nos debates. Mas, desde janeiro, um dos principais pontos da agenda do novo governo tem sido sua postura internacional. De uma forma geral, como o sr. avalia as mudanças nas diretrizes da política externa brasileira e na forma pela qual está sendo conduzida?

Celso Amorim – Vejo com muita preocupação a forma como a política externa vem sendo conduzida. Já durante a administração Temer, o Brasil havia perdido o protagonismo que alcançara em governos anteriores.

A suspensão da Venezuela do Mercosul, que contribuiu para isolar (e, portanto, radicalizar) o nosso vizinho foi um erro diplomático sério, assim como a pouca atenção à América do Sul e a desativação da UNASUL, que nos privou de um instrumento útil para encaminhar soluções pacíficas para disputas internas e entre países da região.

No plano mais amplo, a participação do Brasil em grupos como BRICS e o G-20 se tornou inexpressiva. O Brasil deixou de ser um ator global. Mas isso é pouco se se compara ao que tem sido anunciado e, em certa medida, realizado pelo governo atual, com sua adesão acrítica à visão política dos Estados Unidos (ou mais especificamente ao trumpismo) e a proclamação de uma cruzada contra inimigos imaginários, como o "marxismo cultural" ou o multilateralismo destruidor de soberanias. Mesmo que se tratasse apenas de uma questão de retórica, isso já seria grave, pois em política – e, especialmente, em política internacional – as palavras contam.

Estamos assistindo a algumas ações concretas que vão nessa linha equivocada, desde a rejeição do Pacto Global sobre Migrações e a diminuição do interesse na questão climática, com a retirada do oferecimento do Brasil como sede da próxima COP (além da possível saída da Convenção de Paris) até o apoio incondicional às políticas norte-americanas de mudança de regime na Venezuela e de isolamento do Irã. Essas e outras posturas contrastam não apenas com as do governos Lula e Dilma mas também com aquelas de praticamente todos os governos democráticos, desde a Segunda Guerra Mundial.

Há uma falsa visão de soberania, que é confundida com a rejeição à ordem multilateral. Se levada adiante da forma como foi anunciada, a política externa sofrerá um retrocesso de décadas. A perda de prestígio do Brasil é um fato notório, refletido em órgãos da mídia no mundo inteiro e em textos de analistas insuspeitos de simpatizar com a esquerda. Como o governo está em seu início e ainda não houve uma "acomodação de camadas", é possível que haja recuo em algumas das posições que se chocam de maneira mais obvia com a tradição diplomática brasileira. Esperemos.

Durante a posse de Bolsonaro, o número de delegações estrangeiras foi a menor em décadas. Por qual motivo o sr. acredita que houve uma hesitação?

À exceção do governo de Donald Trump e de alguns líderes de direita europeia e da América Latina, a percepção que se tem do Brasil hoje não é favorável. Vários fatores contribuíram para isso. Na realidade, o despretígio do Brasil antecede as eleições. Não sou eu quem está dizendo, mas um veterano embaixador, que serviu em postos importantes durante vários governos de centro ou centro direita (uma distinção nem sempre simples de fazer). Afirmou aquele respeitado diplomata, em uma entrevista ao jornal Valor, que a imagem do Brasil não vai o vai melhorar enquanto o ex-presidente Lula estiver na prisão. A despeito de todo o noticiário envolvendo eventual corrupção, há uma percepção de grande parte dos líderes mundiais, independentemente de afinidades, que Lula – símbolo dos avanços sociais dos últimos anos e de uma política externa ativa e independente – foi objeto de um processo injusto e que sua condenação, em bases judiciais frágeis, foi fundamental para o resultado das eleições.

Há uma nova relação com o governo americano desde janeiro. De que forma o sr. acredita que possa impactar nas relações do País com outras regiões do mundo? 

O tempo dirá. É possível que outras influências, digamos assim, "pragmáticas" venham a contrabalançar, até certo ponto, o impulso cruzadista de adesão ao trumpismo. Mas não antevejo a possibilidade de uma política aglutinadora de apoios a nossos interesses, como ocorreu na OMC, na primeira década do milênio, ou que contribua para uma maior projeção do Brasil no cenário mundial, como ocorreu no Governo Lula. Fui embaixador de FHC na ONU, em Genebra e em Londres. Nem sempre concordei com certas tomadas de posição. Mas, no conjunto, o comportamento do Brasil era racional e merecedor de respeito. Agora, na melhor das hipóteses, teremos uma política de baixo perfil. Na pior, criaremos hostilidades desnecessárias com países que, entre outros aspectos, são grandes clientes das nossas exportações ou importantes investidores.