A história de uma criança atormentada

Gosto de recontar episódios de infância. Quem não? Peço ao leitor licença para me dedicar a isso hoje. Bem sei que pode parecer irresponsabilidade, no meio de uma crise nacional, voltar-se para assunto tão trivial. Mas, convenhamos, nem só de economia ou política vivemos, mesmo nós, economistas.

Por Paulo Nogueira Batista Jr.*

Ostia - Reprodução da Internet

A pequena história que vou contar é de uma criança atormentada – mas não me queixo, de jeito nenhum. O que somos senão o resultado de embates e sofrimentos que vivenciamos e superamos (ou não) desde a infância profunda? Há que valorizá-los e guardá-los carinhosamente no coração. Por outro lado, é triste, sem dúvida, ver uma criança sofrer. Dostoiévski, que era um defensor ardoroso das crianças, disse certa vez que o sofrimento delas é o argumento mais poderoso contra a existência de Deus. Enfim, deixo o leitor com essa dúvida, e começo.

O ano é 1962. Brasília começava. Aos 7 anos, estava matriculado em uma pequena escola católica à beira do Lago Paranoá. Naquela época, as crianças faziam a primeira comunhão já nessa idade. Era um acontecimento importante, antecedido de preparação. Preparação precária, porém. No fundo, era muito cedo.

Aqui entra em cena um personagem que poderia ter saído diretamente de O Primo Basílio, do Eça de Queirós: uma babá portuguesa, Maria Helena, que era perversa e sabia apavorar com histórias fantasiosas. É a velha história, comum em famílias brasileiras de classe média e alta: os pais, muito ocupados, deixavam as crianças à mercê de empregadas, por vezes, tenebrosas. Certo dia, pouco tempo antes da cerimônia, Maria Helena lançou a advertência sinistra: “A hóstia é o corpo de Cristo – se você mastigar, vai para o inferno!”

Instalou-se um drama que duraria vários anos. Outra criança, mais despreocupada, poderia até tirar de letra. Mas eu não. Passei a viver um duplo problema – sofria com a ameaça levantada pela babá, mas tinha ao mesmo tempo vergonha de estar sofrendo, e não conseguia falar com ninguém a respeito. Ainda ensaiei insinuar o problema para a minha mãe: “Já sei como comungar sem mastigar a hóstia – vou engolir direto”. Não deu certo. Ela não percebeu a angústia do filho.
Chegou o dia – meninas e meninos, de branco, recebiam a primeira comunhão, solenemente, das mãos do padre. Igreja lotada por familiares. Dei um vexame. Tentei engolir a hóstia e engasguei. Tive que ser socorrido com tapas nas costas e outras providências. Pior: acabei mastigando a hóstia! Ao constrangimento público somou-se o medo do inferno.

A partir de então, a cada domingo, o mesmo drama. Não encontrava meio de comungar sem mastigar a hóstia. Mudamos para Nova York (meu pai era diplomata) e a novela continuava. Tentava novas técnicas: por exemplo, deixar a hóstia dissolver, mas, nervoso, a boca ressecada, a hóstia acabava grudada no céu da boca! Passei a não me confessar para ter pretexto para não comungar. Mas fugir da confissão dava lugar a novos dramas de consciência.

Acredite, leitor, o problema, aparentemente ridículo, era verdadeiramente enorme. Ainda me lembro da seguinte situação tragicômica, quando nos mudamos para Ottawa, no Canadá, creio que em 1966. Minha mãe chega feliz em casa e anuncia que, em recepção diplomática, conhecera o Núncio Apostólico (embaixador da Santa Sé), Monsenhor Pignedoli: “Meu filho, você vai ser o coroinha nas missas que ele reza para o corpo diplomático todo domingo”. Entrei em pânico. Não sei se o leitor sabe, mas o coroinha é sempre o primeiro a comungar! Segundo minha mãe, Pignedoli era um possível futuro papa, o que só aumentava a minha responsabilidade.

Tudo isso a criança enfrentava sozinha, agora já com 10 ou 11 anos, sem coragem de compartilhar com ninguém. Mais tarde, ainda, em Ottawa, uma prima, chamada Marília, que teria uns 18 ou 19 anos, passou algum tempo hospedada lá em casa. Aproximei-me dela aos poucos e resolvi, então, abrir para ela o coração de par em par, esperando talvez que ela intercedesse junto à minha mãe. Mas, provavelmente inibido e envergonhado, com dificuldade de me expressar, não consegui transmitir à prima a dimensão do problema. Marília era ótima, carinhosa, mas não deu bola. Fiquei na mesma. De retorno ao Brasil, por volta de 1968, ainda lembro dos padres do Colégio Santo Inácio, no Rio de Janeiro, reclamando que eu era um dos poucos que nunca se confessavam…

Minha mãe, para quem acabo de ler o artigo e que, em outros tempos, talvez discordasse veementemente, disse, com um sorriso cético: “O passado somos nós que fabricamos, com as recordações que nos agradam ou não”. E acrescentou: “Vão pensar que você está biruta”.