A reforma da Previdência e a privataria dos fundos de pensão

Os dilemas do sistema de aposentadoria exigem uma reflexão sobre a longevidade dos trabalhadores.

Por Osvaldo Bertolino

Previdência

A previsão do banco norte-americano Citibank de que a aprovação da “reforma” da Previdência Social trará uma “economia” de cerca de R$ 500 bilhões nos próximos dez anos “para o país” é um dado reveledor; o ministro da Economia, Paulo Guedes, prevê que a “economia” será de R$ 1,1 trilhão. O termo “economia” é um sofisma, retórica de marketing para incauto engolir; a “reforma” transfere recursos que deveriam garantir a aposentadoria aos trabalhadores para a ciranda financeira.

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Essa manobra é mais acintosa quando se constata que a longevidade nos países pobres, como o Brasil, está se dando num passo mais rápido do que nas nações industrializadas. Em países como a França e a Bélgica foram necessários 100 anos para que o conjunto de pessoas acima de 60 anos dobrasse de 9% para 18% da população. O Brasil, que iniciou no final dos anos 1960 um processo de declínio acelerado de sua taxa de natalidade, deverá chegar ao ano 2026 com 31,8 milhões de pessoas — ou seja, 18% da população — com mais de 60 anos.

Tesouro Nacional

Mais tarde, quando os jovens que hoje trabalham se aproximarem da idade de aposentadoria — por volta do ano 2030 —, 80% dos idosos do mundo estarão concentrados nos atuais países pobres. Essa alteração do perfil demográfico no mundo é vista com um nó górdio que precisa ser desatado. O desafio é saber como a parcela cada vez menor de jovens fará para prover, no futuro, o sustento da parcela cada vez maior de idosos da população.

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Nos sistemas de retenção na fonte, como é o atual reegime previdenciário brasileiro alvo da proposta de “reforma” neoliberal, à medida que as populações envelhecem a tendência é subirem as taxas de contribuição e diminuírem os benefícios. Hoje, a arrecadação sobre a folha de pagamento é superior a 25% em países como Brasil, Hungria, Egito, Rússia e Itália. Na década de 1950, para cada aposentado brasileiro havia oito trabalhadores na ativa contribuindo para a Previdência Social. Hoje, a proporção já é de 2,3 para 1.

É evidente que o país teria de discutir formas de financiar a Previdência Social que passariam obrigatoriamente pelo conceito de gastos do Tesouro Nacional. O fato é que os sistemas de amparo financeiro à aposentadoria estão em crise em todo o mundo. Se a situação é crítica na América Latina e no Leste Europeu, os problemas também se avolumam nos países-membros da OCDE. Em alguns países ricos, os gastos públicos com a previdência já ultrapassam 15% do Produto Interno Bruto (PIB). No caso dos Estados Unidos, as projeções mostram que, pelo sistema atual, não haverá dinheiro para pagar aposentados e pensionistas após 2029.

Poupança voluntária

A divergência desponta quando as soluções aparecem, como é o caso da proposta de “reforma” do governo brasileiro. O assunto tem a ver com o modelo econômico de cada país. Por isso, precisa ser debatido em âmbito nacional, levando-se em conta as particularidades de cada nação, e não como “uma tendência mundial” — como insistem os neoliberais. Um dos principais proponentes de soluções é o Banco Mundial. A “reforma” que essa instituição propõe assenta-se em três pilares: redistribuição, poupança e seguro.

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O primeiro pilar seria uma poupança compulsória, à base de contribuições, gerida pelo Estado. O objetivo é assegurar um rendimento mínimo para os aposentados de baixa renda. O segundo pilar, formado também por contribuições compulsórias dos trabalhadores, seria gerido pela iniciativa privada, mediante planos de poupança individuais e fundos de pensões privados. O valor dos benefícios a ser distribuídos dependeria dos resultados obtidos pelos administradores da poupança.

Por fim, seria criada uma poupança voluntária, gerida pelo setor privado, para quem quiser uma proteção adicional quando se aposentar. Segundo o Banco Mundial, o peso maior deve ser do setor privado, que teria poderes para escolher os melhores investimentos disponíveis no mercado — ações, bens imobiliários ou ativos em moeda estrangeira —, coisa que o sistema estatal não poderia fazer.

Essa propaganda impulsionou, de forma exponencial, o crescimento da previdência privada no Brasil. Os planos individuais, regulamentados há apenas pouco mais de duas décadas, romperam os R$ 100 bilhões de patrimônio logo depois, no primeiro trimestre de 2006. A questão é saber se essa é uma saída aceitável para o problema. Motivos para descontentamento com a atual situação da Previdência Social existem de sobra.

Previdência complementar

Uma pesquisa do governo mostrou um retrato alarmante — apenas 1% dos trabalhadores consegue manter uma renda satisfatória com a aposentadoria. A maioria sobrevive com ajuda de parentes e amigos ou precisa continuar trabalhando de alguma forma. Segundo uma pesquisa realizada pela consultoria Target, de São Paulo, 4,4% da população ganham hoje na ativa acima de trinta salários mínimos. No entanto, cerca de 90% dos aposentados pelo INSS recebem até dois salários mínimos mensais. Os outros 10% recebem de três a dez.

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É fácil imaginar o que aconteceu com o nível de vida dos aposentados que pertenciam à faixa de maior poder aquisitivo quando estavam na ativa. Mesmo sem a “reforma” as projeções indicam que apenas 0,9% da população brasileira terá renda suficiente ao atingir os 60/65 anos para poder usufruir uma vida agradável, sem preocupações financeiras e sem ter a obrigação de trabalhar. Os restantes 99,1% irão depender de familiares ou do recebimento de alguma pensão, em geral insuficiente para sobreviver com dignidade.

Há 19 milhões de pessoas recebendo algum tipo de benefício do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) — 70% delas têm direito a até R$ 300 por mês. Individualmente, é pouco. Somados, os benefícios representam quase R$ 170 bilhões por ano. A propaganda neoliberal bate incansavelmente na tecla de que a Previdência Social não tem tanto dinheiro, e o resultado é um déficit estimado, neste ano, em R$ 32 bilhões.

Chile e Estado Unidos

O carro-chefe da previdência complementar no Brasil são os fundos de pensão fechados, responsáveis por 70% do mercado. A pergunta que deve ser feita é: até que ponto o segurado pode ter a garantia de que o contrato entre as partes será cumprido e de que não irá ocorrer algo semelhante ao que aconteceu no passado com os montepios? O fato de as empresas de previdência privada serem hoje ligadas em sua maioria a grandes grupos financeiros não dá essa segurança.

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E mais: os proventos dependerão de fatores imponderáveis, que podem ser resumidos às incertezas quanto a evolução político-econômica do país. As experiências de outras nações que promoveram essas mudanças não são nada animadoras. Na Espanha, quem se aposenta antes dos 65 anos vê sua pensão sofrer descontos pesados. Já a Suécia preferiu mudar a fórmula de cálculo da aposentadoria — em vez de pagar uma média sobre os salários dos últimos anos de contribuição, como acontece no Brasil, os benefícios são estabelecidos por uma média de todo o tempo de contribuição.

Mas foi o vizinho Chile que adotou a reforma mais radical. O então presidente, general Augusto Pinochet, privatizou todo o sistema em 1981 e os trabalhadores passaram a depositar 10% do salário bruto em fundos de pensão privados. O pior exemplo, mesmo, é o dos Estados Unidos. Lá, onde o sistema já funciona há tempo suficiente para conferir seus efeitos, os sinais são de corrosão.

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Hoje, oito em cada dez fundos de pensão do país apresentam déficits em suas contas. Mais da metade opera em estado grave. Eles já têm mais obrigações financeiras do que seu patrimônio líquido. O rombo total representa algo como 80% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro. A soma de todos os prejuízos reunidos dá um buraco de mais de US$ 450 bilhões no sistema de previdência privada. Como resultado prático dessa quebradeira, a diferença entre aquilo que os norte-americanos esperavam receber na aposentadoria e sua remuneração real é de 25% — para menos, é claro.