A “reforma” da Previdência e a expectativa de vida no Piauí

Combinação de 65 anos de idade para se aposentar e privatização do sistema resulta numa monstruosa perversidade contra os trabalhadores.

Por Osvaldo Bertolino

Previdência

O Jornal O Globo, em editorial intitulado “O falso problema da expectativa de vida no Piauí”, publicado na quarta-feira (13), resumiu como a direita concebe a Previdência Social. O texto critica o presidente da República, Jair Bolsonaro, que citou a expectativa de vida no estado Piauí — de 71,2 anos, calculados em 2017 — como argumento em defesa de um limite mais baixo do que os 65 anos de idade anunciados para a aposentadoria.

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Antes, o jornal dos Marinho repisou o argumento de que a população brasileira envelhece em alta velocidade, enquanto a taxa de natalidade cai bastante, uma relação que faz aumentar as despesas com aposentadorias e pensões e reduzir as receitas, pela entrada cada vez menor de jovens na força de trabalho. Essa seria a razão, muito clara, segundo o jornal, da causa estrutural da crise da Previdência.

Não entra, nessa contabilidade, a evolução do Produto Interno Bruto (PIB) e da produtividade desde que a Previdência Social foi instituída como um importante recurso para distribuir renda e começar a corrigir a brutal desigualdade social herdada do escravismo. Há, nesse conceito, a ideia de que a Revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas, deu consequência aos saltos civilizatórios materializados com a Independência, a Abolição e a proclamação da República.

As conta do O Globo

O Globo faz as constas, corrigindo Bolsonaro. O piauiense viverá 71,2 anos, em média, tendo como referência a data do seu nascimento. Porém, o tempo de vida a mais de quem chega aos 65 anos no estado é muito maior. Segundo estimativas do IBGE feitas em 2017, o natural do Piauí, de 65 anos, terá mais 14,6 pela frente, e a mulher, 17,8 anos. Quer dizer: a expectativa de vida no Piauí condicionada à idade de 65 anos, que poderá ser o teto para aposentadoria, ou pouco menos, é de quase 80 anos para os homens, e 82,8 para as mulheres.

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Não é muito diferente da média brasileira, diz O Globo, e é esta projeção que interessa para o “equilíbrio” da Previdência, não a expectativa de vida no nascimento. O jornal conclui que, ao contrário do que pensam Bolsonaro e ministros como Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), não se comete qualquer injustiça na proposta de limite de 65 anos de idade para homens e mulheres. Mesmo no Piauí, onde é relativamente baixa a expectativa de vida ao nascer.

Segundo O Globo, o difícil neste debate é que ele mexe com a insegurança das pessoas diante da velhice, com razão, e por isso nem sempre a discussão é racional. Mas isso é o de menos: o importante é que qualquer sistema previdenciário tem como lastro uma lógica sólida. O jornal não diz, mas é fácil deduzir que a solidez mencionada só será alcançada com um corte radical no sistema de aposentadoria.

Para O Globo, a “reforma” da Previdência Social serve de munição para muita demagogia, como, por exemplo, a de que 65 anos de idade como referência prejudicará os pobres. E justifica a “justiça” dessa proposta com a alegação de que tem sido nesta idade que eles costumam se aposentar, por enfrentarem grandes dificuldades para completar 15 anos de contribuição, a fim de obter o benefício, o que os leva a bater à porta de programas de assistência social, que usam este mesmo limite.

Imposto de Renda

Não é preciso pensar mais do que dois minutos para se entender o sentido perverso dessa proposta de 65 anos de idade para se aposentar. Ela se junta à outra perversidade, a sistema privado, cuja soma resulta na eliminação, na prática, da Previdência Social como ela foi concebida, um dos mais significativos legados da “era Vargas”. A maioria dos brasileiros deve a esse legado, além da Seguridade Social — que abrange a Previdência Social, a assistência médica e a assistência social —, os benefícios decorrentes do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), do PIS/Pasep e da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins).

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Com essa “reforma”, o caminho para o acesso a esses benefícios se transformará numa estrada esburacada. O mais atingido, óbvio, é a aposentadoria. Em linguagem mais técnica, a privatização do sistema significa a troca do modelo de benefício definido pela contribuição definida. O benefício definido segue a fórmula tradicional conhecida pela grande maioria dos brasileiros: todos contribuem para um fundo conjunto e estipula-se um determinado valor para a aposentadoria, com base na média salarial (80% do último salário, por exemplo). Todos contribuem para todos.

O modelo de contribuição definida, ao contrário, estipula o valor da contribuição mas não o da aposentadoria. Cada trabalhador tem uma conta individual. O valor da aposentadoria vai depender das quantias depositadas e do rendimento das aplicações que ancoram o fundo. Um banco, uma seguradora ou uma empresa privada de outra natureza pode administrar esses recursos. No mercado financeiro, esse conceito já é amplamente utilizado.

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Funciona assim: a pessoa deposita mensalmente a quantia que escolher. Esse valor é gerido pelos administradores dos recursos, que cobram uma taxa pelo seu trabalho. Após certo tempo e cumpridas algumas condições, o depositante terá direito a sacar o resultado do que depositou. Algumas empresas têm o seu próprio sistema. Num plano fechado, como são conhecidos os fundos patrocinados por uma ou mais empresas, a poupança não depende só do trabalhador. A maioria das empresas também entra com uma parte. Assim, para cada real que o trabalhador tira do bolso, o empregador contribui com uma parcela correspondente.

Isso não tem nada a ver com bondade ou sensibilidade social — ao proceder assim, a empresa paga menos Imposto de Renda. A principal vantagem do plano de contribuição definida para as empresas é a transferência do risco financeiro ao trabalhador. Essa modalidade começa a predominar também nos fundos de pensão.

Balanço analítico

A última “reforma” da Previdência aprovada determina que o funcionário público só pode ter o sistema de aposentadoria suplementar se for por meio da contribuição definida. Pelo modelo de benefício definido, em caso de déficit cabe à empresa ou ao Estado arcar com o seu custo. A pressão para que os fundos de pensão, responsáveis por gerir um patrimônio de cerca de R$ 40 bilhões, sofrem para trocar o modelo de benefício definido pela contribuição definida inclui a tese de que bancos são os melhores administradores de uma carteira de investimentos em ações e renda fixa. Afinal, dizem os adeptos dessa tese, eles vivem disso e para isso.

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A verdade é que os recursos dos fundos de pensão já apareceram como componentes importantes do mercado financeiro. É óbvio que os bancos vão sempre ter todos os argumentos do mundo para convencer os fundos de pensão a entregar suas aplicações a eles. Mas o que os trabalhadores ganham com isso?

Para começar, nunca se viu publicado em qualquer veículo de comunicação que atinja diretamente o trabalhador um balanço analítico e compreensivo desses fundos, principalmente os terceirizados. O que sabemos é pouco e não agrada. Sabemos, por exemplo, que os recursos financiam até privatizações. Com isso, no lugar de justiça social e distribuição de renda, o que acaba ocorrendo é a concentração da riqueza nacional nas mãos de grandes grupos econômicos.