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O comunista que beijou Machado de Assis no leito da morte

Em 1964, a casa de nº 11 da rua do Bispo, no Rio Comprido, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, foi invadida e saqueada pela polícia. Ali morava um perigoso subversivo chamado Astrojildo Pereira Duarte Silva, de 74 anos e armado de livros até o teto.

Por Sérgio Augusto*

Astrojildo Pereira

De quê o acusavam? De haver conspirado para derrubar o governo. Não o que acabara de derrubar João Goulart, mas o que nos governara cinco décadas antes, quando aquele pacato senhor tinha apenas 28 anos e fazia parte de um grupo anarquista, liderado pelo professor José Oiticica.

A prisão de Astrojildo Pereira mobilizou jornalistas, escritores e artistas, todos preocupados com o seu coração, avariado, meses antes, por um enfarte. Já estávamos em 1965 quando outro enfarte, daquela vez fatal, desfalcou as hostes comunistas de seu mais respeitável crítico literário. Seu enterro, coroado com um discurso de Otto Maria Carpeaux, foi num cemitério de Niterói – a mesma cidade de onde, 56 anos antes, Astrojildo saíra do anonimato para a história da literatura.

28 de setembro de 1908. Um jovem de quase 18 anos pega a barca da Cantareira rumo à Praça XV, do outro lado da baía de Guanabara. Nem seus pais sabiam que ele pretendia visitar Machado de Assis no leito de morte. Tenso, Astrojildo bateu à porta do casarão do Cosme Velho, identificou-se apenas como “um grande admirador do escritor” e implorou para que o deixassem entrar e ver o mestre de perto.

Em vigília na sala de estar, Euclides da Cunha, Coelho Neto, José Veríssimo, Raimundo Corrêa, Graça Aranha e Rodrigo Otávio manifestaram-se contra a entrada do rapaz desconhecido. Acordado pelo burburinho, Machado permitiu que Astrojildo entrasse em seu quarto, ajoelhasse ao lado da cama e lhe beijasse a mão, partindo logo depois sem se identificar. O escritor morreria na madrugada seguinte.

“Naquele meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis, aquele menino foi o maior homem de sua terra”, escreveu Euclides da Cunha, num célebre artigo intitulado “A última visita”, publicado no Jornal do Commercio, dois dias depois da morte do escritor. “Qualquer que seja o destino desta criança”, vaticinou, “ela nunca mais subirá tanto na vida”.

Três paixões

Durante quase 30 anos Astrojildo moitou sobre a identidade da “última visita” de Machado, afinal revelada por Lúcia Miguel Pereira em 1936. Àquela altura, ele já era um nome bem conhecido, junto às esquerdas principalmente. Fazia então quatro anos que o Partido Comunista o afastara de seus quadros, por considerá-lo um “intelectual pequeno-burguês” e “oportunista”. Além do mais, prestista. Foi por seu intermédio que o tenente Luís Carlos Prestes, exilado na Bolívia, teve acesso aos primeiros clássicos do marxismo-leninismo.

Três paixões Astrojildo teve na vida. As duas maiores, por ordem de entrada em cena, foram Machado (a quem dedicou, em 1959, um precioso estudo sociológico, reeditado pela Oficina de Livros de Belo Horizonte) e o comunismo. A terceira, marcante mas passageira, foi Ruy Barbosa.

Para o rapazola de Rio Bonito que acompanhava de Niterói a cosmopolitização do Rio, Machado e Ruy eram os dois símbolos máximos da modernização da velha capital, seu ponto de encontro com o nacional e o internacional, o fascínio e o desencanto, a elegância e a brutalidade, a utopia republicana e a luta de classes, a vida literária e as festas populares, “tudo em contraditória tensão, sem a qual não se pode compreender a origem do revolucionário”, para usar as palavras de Martin Cesar Feijó em O Revolucionário Cordial, biografia intelectual e política de Astrojildo que Boitempo Editorial veio a lançar.

Feijó já escrevera, na década de 80, um ensaio sobre a formação política de Astrojildo, agora expandido e aprofundado nessa obra francamente empenhada em caracterizar o mestre informal de Prestes como um sujeito de boa alma, afável, honesto e tolerante, utilizando-se da terminologia consagrada por Sergio Buarque de Holanda, que aliás conheceu Astrojildo em 1929, em Berlim. Para sua surpresa, em vez de um “bolchevique inflexível”, encontrou “um homem refinado e de excelente formação literária”. Intelectuais tão díspares quanto Carpeaux, Gilberto Freyre, Oswald de Andrade e Antonio Candido passaram pela mesma surpresa. Até o ferrenho anticomunista Nelson Rodrigues reverenciava a figura e a opinião de Astrojildo.

Autodidata desde a adolescência, o “revolucionário cordial” nem concluiu o curso ginasial. Como tantos jovens da sua geração, foi civilista, anarquista, e antes mesmo de desviar para o comunismo, em 1921, já não via com bons olhos o Águia de Haia. Quando este morreu, em 1923, foi todo ironia: “O proletariado não perdeu nada com isso, antes pelo contrário”. Mas a Machado e ao comunismo permaneceu fiel a vida inteira.

* Sérgio Augusto é um dos mais importantes jornalistas culturais na história da imprensa brasileira. O texto acima é parte de um artigo de sua autoria publicado no Estadão em 6 de outubro de 2001.