“Reforma” da Previdência Social é um dogma que não se sustenta

A ofensiva contra os avanços sociais históricos em escala mundial está empobrecendo os trabalhadores rapidamente. 

Por Osvaldo Bertolino

Previdência

Em todo o planeta, há uma percepção, cada vez mais forte, de que o padrão de vida dos trabalhadores está sendo ameaçado pelo imenso poder concedido aos grandes grupos privados pela “globalização” neoliberal. Ou seja: as privatizações e a busca agressiva da produtividade por meio da pressão sobre os países para a liberalização de suas economias — principalmente a chamada “flexibilização” das leis de proteção social e trabalhista — representam uma barreira que o capital tenta erguer contra o trabalho.

Aumento da produtividade quer dizer, sucintamente, mais valor agregado à produção por cada hora trabalhada. A apropriação deste valor é a grande questão posta em debate com a imposição das regras do capitalismo contemporâneo, responsável por uma rápido agravamento da pauperização social.

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Além do desemprego gigantesco, existem outros fatores que contribuem para essa situação. Baixos salários, regimes de superexploração, trabalho escravo de presos e infantil e restrições à liberdade sindical são cada vez mais frequentes no mundo. Ameaças a aposentadorias, férias e adicionais de remuneração, restrições na assistência médica, no seguro-desemprego e em outros benefícios também estão presentes. As consequências de tudo isso passam longe da cartilha dos neoliberais. Para eles, esse é o preço a pagar para que as economias possam sustentar seus crescimentos, um dogma frequentemente repetido em seus seus programas de governo, nas análises do noticiário econômico e na pauta política da mídia.

Defesa popular

O mantra é repetido não para estimular a reflexão e o debate, mas pregar mentiras como verdades à força da repetição. Segundo seus prelados, o assunto não deve ser julgado em termos de ''contra'' e ''a favor'', como se fosse um programa partidário, um sistema de idéias sobre o qual não há a opção de aderir ou rejeitar. Como eles se imaginam os donos absolutos da verdade, acham que podem impor seu pensamento único como um conjunto de realidades que passaram a fazer parte da vida econômica mundial. Vêem a resistência dos povos como alguma coisa tramada por “esquerdistas”, não se sabe bem como, e promovida mundo afora pelos partidos progressistas e seus sindicatos. Disso vem, de um jeito ou de outro, pregam os neoliberais, a responsabilidade pela maioria das coisas erradas que existem por aí, a começar pelo desemprego.

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Outra pregação vazia da ideologia neoliberal é a de que mais um perigo veio juntar-se à resistência: a defesa popular — ou populista — do “estatismo”, com suas gigantescas máquinas públicas, custos sociais elevados, que vai na direção oposta à da “liberdade de iniciativa”. Contudo, é difícil para os arautos desses dogmas sustentar seus pontos de vista diante das mazelas sociais mesmo das economias desenvolvidas. A todo momento fica demonstrado que os trabalhadores estão entre os que pagam mais caro pelos efeitos dessas políticas conservadoras.

Na Europa, o Estado de bem-estar social que foi concebido para injetar compaixão no capitalismo já não é mais o mesmo. Por toda parte, governos social-democratas criaram benefícios para os idosos, os desempregados e os pobres. Foram estabelecidas regras para aumentar os salários, garantir empregos e melhorar as condições de trabalho. Afirmar que não dá mais para bancar todos esses benefícios, mesmo com os elevados ganhos de produtividade da segunda metade do século XX, é faltar com os mais elementares princípios da verdade. Por isso, os esforços para cortar benefícios afundam em meio à resistência popular. A questão real é que a sobrevivência do Estado de bem-estar social é a condição para evitar a volta do capitalismo sem freios do século XIX.

As ruas governam o país

O ponto central dessa polêmica é a previdência social. Em 1988, Michel Rocard, então primeiro-ministro do governo socialista de François Mitterrand, já antecipava as dificuldades à frente das tentativas "reformistas". ''A reforma das aposentadorias tem poder para derrubar vários primeiros-ministros'', afirmou. Seu vaticínio se confirmou em 1995, quando o premiê de direita Alain Juppé decidiu encarar o problema. O chefe de governo não resistiu no cargo depois de um inesquecível dezembro de greves e intensas manifestações populares, as maiores realizadas no país desde maio de 1968. Com a queda de Juppé, a questão foi para a geladeira — e lá ficou até que o presidente Jacques Chirac foi reeleito.

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A "reforma" da previdência, já encaminhada pela maioria dos vizinhos europeus na década de 1990, virou a grande prioridade de seu governo. Chirac quis aproveitar a maioria parlamentar para mexer num vespeiro capaz de fazer o termômetro social atingir as mais elevadas temperaturas. Foi exatamente o que se viu: milhões de trabalhadores protestaram em mais de uma centena de cidades francesas, e numerosas paralisações foram decretadas, principalmente nos serviços de transporte público (trens, ônibus e metrô) e da educação, superando todas as expectativas iniciais. A insistência do governo, aliada a um amplo trabalho de propaganda enganosa, não arrefeceu a resistência. ''As ruas não governam o país'', reagiu o primeiro-ministro Jean-Pierre Raffarin. Governavam: Raffarin, atingido pela derrota do governo no referendo sobre a Constituição da União Européia em maio de 2005, foi substituído por Dominique de Villepin e a reforma da previdência voltou para a gaveta.

O sistema de bem-estar social teve seu apogeu na Guerra Fria. Com a derrocada do bloco soviético, o caráter ideológico da discussão entre as vantagens do capitalismo “menos desumano” sobre o capitalismo selvagem se acentuou. Os governos dos países europeus começaram a fazer contas e, do nada, “descobriram” que o chamado welfare state havia se tornado caro e pesado demais para ser mantido. A Inglaterra iniciou o processo em 1979 pelas mãos liberalizantes da dama de ferro, Margaret Thatcher. Depois, o governo britânico publicou uma lei prevendo aumento progressivo da idade da aposentadoria, até chegar a 68 anos.

Além disso, a pensão deixou de ser indexada à inflação e passou a ser baseada no aumento dos rendimentos, algo como fez o Chile do ditador Augusto Pinochet com sua previdência privada. Na Alemanha, o governo de ''grande coalizão'' de Angela Merkel anunciou que fixaria o aumento da idade legal de aposentadoria para 67 anos até 2029. A Itália abriu negociações para uma nova "reforma", com a proposta de aumentar a idade da aposentadoria. A Comissão Européia pediu que os países da União Européia (UE) ''intensifiquem seus esforços de reforma diante do rápido envelhecimento das populações''.

Mudanças demográficas

Outro problema ignorado pelos neoliberais é que eles desprezam que por trás dos sistemas de aposentadoria existe uma indústria trabalhando a todo o vapor. Dos medicamentos e serviços de saúde aos automóveis, dos alimentos ao setor financeiro, não há área de negócios que escape da influência das mudanças demográficas em curso. De acordo com um levantamento da Organização das Nações Unidas (ONU), a quantidade de sexagenários no mundo já é maior do que a de crianças abaixo de 14 anos. Em 2025, o Brasil passará da 16ª posição à sexta na lista dos países com o maior número de idosos. Serão 33 milhões de pessoas com mais de 60 anos — o equivalente a duas vezes a população do Estado de Minas Gerais.

Um levantamento do grupo francês Sodexho avalia em 25 bilhões de dólares o potencial de mercado dos idosos em 11 países. Devido ao envelhecimento da população, a Sodexho estima que até 2025 seus negócios — que vão desde serviços de alimentação, limpeza e lavanderia até o acompanhamento de idosos e os cuidados com eles — cresçam 27% na Espanha, 13% no Reino Unido e 3% na França e na Itália. ''No Brasil, a expectativa é que esse mercado aumente 10% ao ano'', diz Plínio de Oliveira, diretor-geral da subsidiária brasileira da Sodexho. Por tudo isso, não é possível imaginar uma economia dinâmica e em desenvolvimento sem levar em conta a necessidade de um sistema de aposentadoria minimamente decente.