Amir Khair: outra visão sobre sistema previdenciário

Engenheiro e especialista em contas públicas defende que a retomada mais forte do crescimento é caminho mais eficiente para a recuperação das finanças governamentais 

Previdência

Uma visão diferente às principais teses que vêm sendo defendidas no debate público a respeito da economia brasileira. É o que se propõe o engenheiro e mestre em finanças públicas pela FGV, Amir Khair, nesta entrevista ao Diário do Comércio e Indústria (DCI).


Amir Khair

Nas linhas à seguir, o especialista, que também foi secretário de Finanças da Prefeitura de São Paulo (1989/92), argumenta que os déficits da Previdência Social e das contas federais foram muito mais agravados pela queda da arrecadação causada pela crise econômica, do que por um crescimento acelerado das despesas, como é recorrentemente defendido.“Finanças públicas são compostas por despesas, receitas e juros. E o debate hoje está muito centrado somente em controlar e cortar despesas. Isso é importante. Mas é preciso considerar também nas receitas e, para isso, é preciso pensar em como retomar o crescimento econômico. Se você não leva em consideração todos os componentes das finanças públicas, você toma decisões erradas”, afirma Amir Khair.

Além disso, o especialista comenta sobre os principais desafios fiscais dos governos estaduais e de que forma o Brasil pode voltar a crescer.

Qual é o seu diagnóstico a respeito das finanças do governo federal e da Previdência Social?

A tese central mais comum que está sendo defendida hoje é que as despesas da União não param de subir. Mas os gastos públicos estão estagnados desde 2014 e isso os dados oficiais do Tesouro Nacional nos mostram. A despesa vinha crescendo sim, mas se estabilizou em 2014 e passou a cair nos anos seguintes: 2015 [R$ 1,372 trilhão], 2016 [1,357 trilhão], 2017 [1,378 trilhão] e deve ter alcançado algo próximo de R$ 1,370 trilhão em 2018. O que arrebentou as contas públicas não foi o aumento das despesas, mas sim a violenta queda da arrecadação tributária, algo que está relacionado com a recessão.Até 2014, as receitas vinham avançando no mesmo ritmo em que as despesas, mas partir da crise elas sofreram uma queda brutal. [Em valores de novembro de 2018, a receita líquida da União passou de R$ 1,365 trilhão em 2013, para R$ 1,318 trilhão em 2014, diminuindo para R$ 1,233 trilhão em 2015 e para R$ 1,183 trilhão em 2016. A partir de 2017, a receita voltou a registrar crescimento].

E como isso ocorreu com relação à Previdência?

Isso que eu estou falando sobre as contas do governo federal vale para a Previdência Social [o INSS, que rege as aposentadorias do setor privado]. A receita previdenciária vinha crescendo em paralelo com a despesa e, a partir de 2014, começou a cair.Entre 2008 e 2010, por exemplo, o déficit do INSS estava em 1% do PIB e, com o passar dos anos, ele foi diminuindo até chegar em 0,7% do PIB em 2014. Ora, em 1998, o déficit também era de 0,7% do PIB sendo que, entre 1998 e 2014, o número de idosos com mais de 65 anos cresceu 78%, segundo o IBGE. Mesmo com esse crescimento, o déficit permaneceu em 0,7% do PIB. Vai explicar isso, entende? Quando você considera a arrecadação é isso que acontece.O déficit da previdência existe. Negar isso é querer tapar o sol com a peneira, mas o problema é apurar esse déficit rigorosamente. […] Em 2014, o rombo da Previdência Social foi de R$ 49 bilhões. Mas durante os anos de 2015, 2016, 2017, houve um aumento violento do desemprego. Muita gente foi para a informalidade, começou a trabalhar com bicos. Então, por conta disso, a arrecadação da Previdência caiu muito, enquanto a despesa continuou subindo no mesmo ritmo. Atualmente, o déficit do INSS está em torno de R$ 180 bilhões.

Mas então de que forma podemos resolver isso?

Se queremos recuperar as finanças públicas e a Previdência Social, precisamos recuperar o crescimento econômico. Na questão da Previdência, existe uma conta que não está sendo feita e que é um aspecto gritante e óbvio: quando você dá dinheiro para os aposentados, eles não colocam esses recursos debaixo do colchão, não mandam para o exterior. Eles usam o dinheiro para consumir na farmácia, no supermercado. E, quando fazem isso, eles movimentam a atividade econômica, gerando arrecadação de tributos para os governos federal, estadual e municipal. Então, quando você considera esse efeito secundário muda muito o cenário do déficit da previdência, entende?  Mas ninguém está debatendo isso. O que interessa ao setor público é o conjunto das receitas e despesas, não apenas o gasto. E como você considera as questões demográficas ?

Como lidar com o maior envelhecimento da população?

Tem vários fatores ligados à demografia que precisamos passar a levar em consideração. Um deles se refere à população jovem. Sabemos que ela está diminuindo, ao passo que a população mais velha vem crescendo. Porém, a partir do momento em que a população mais jovem começar a encolher, a pressão de gastos com as escolas públicas e com o Sistema Único de Saúde (SUS) também diminui. Os governos vão passar a gastar menos com essa população, o que abre espaço no orçamento para outras despesas. Mais uma vez: não se separa a perspectiva de receita das projeções de despesa. Se você separa, você cria decisões falsas.

Como você acha que deve ser encaminhada a reforma da Previdência Social no governo de Jair Bolsonaro?

Me parece que eles querem ganhar tempo e não partir da estaca zero. Nesse sentido, o governo deve aproveitar tudo o que já foi encaminhado na época do Temer [Michel, ex-presidente]. Talvez eles flexibilizem um pouco [a PEC 287] para poder negociar. Depois de reformar a Previdência atual, eles devem entrar com a proposta do regime de capitalização, que já estava no programa do Bolsonaro. Aliás, ele foi o único candidato que propôs a capitalização individual.

E o que você pensa sobre a capitalização?

Qual é o problema desse sistema? – e isso vai gerar uma discussão muito grande. O problema é que a contribuição das empresas e do governo para o sistema previdenciário deixarão de existir. Ou seja, o trabalhador será o único responsável pela sua aposentadoria. Se você pegar o histórico, desde 1997 até agora, da composição dos recursos que chegam à Previdência Social, os números são basicamente estes: o trabalhador contribui com 25%; as empresas com 50%, enquanto o governo complementa o que falta. Ou seja, se você montar um sistema cuja arrecadação será menor, que contemple apenas os 25% da contribuição dos trabalhadores, é de se esperar que, quando a pessoa for solicitar a aposentadoria, ela receba apenas um quarto do valor que ela recebeu durante todo o período em que estava na ativa. Essa situação não está clara para a sociedade.

E temos o ponto de como financiar a transição de um sistema para o outro…

Esse é um ponto que o pessoal tem levantado. Porque hoje se paga os aposentados e os pensionistas com o dinheiro dos trabalhadores, do governo e das empresas. E, a partir de amanhã, acabaria com a contribuição do governo e das empresas. Então como financiar? Nesse período todo que temos até a implementação plena do sistema de capitalização, é uma quantidade absurda de dinheiro que vamos precisar. Então como é que se resolve isso? [O atual secretário da Receita Federal] Marcos Cintra havia falado de uma nova CPMF [intenção que já foi descartada]. Isso seria uma coisa muito complicada. […] O governo deve optar por um sistema misto. Não deve implementar direto isso [o sistema de capitalização].

E como você avalia a questão da previdência pública?

Na esfera pública, o problema principal são mesmo os estados. Diferentemente do governo federal, os estados não fizeram uma reforma da previdência. Mas, agora, eles serão obrigados a fazer. Não tem como escapar. Isso significa que, muito provavelmente, todos eles devem aumentar a alíquota de contribuição dos servidores públicos de 11% para 14%. E eu acho que isso tem mesmo que acontecer, porque os servidores públicos têm uma vantagem muito grande sobre o trabalhador do setor privado. Eles têm estabilidade, ganham 13 salários, bem acima do mercado. Então, nessa circunstância, os servidores deveriam bancar mais a sua aposentadoria.

Inclusive a maioria dos estados aumentou ICMS para cobrir despesa com servidor e não para investir …

Pois é. Essa discussão precisa ser muito aberta. Porque quem paga o salário do servidor público não é o governador. É a população. É uma transferência muito ruim de renda. Mas os governadores não vão escapar dessa reforma nos próximos quatro anos.

E no governo federal?

O regime próprio do servidor público federal é cadente, ou seja, ele parte de um déficit de 1,1% do PIB [atualmente] e termina em 2060 com 0,3% do PIB. Isso vai acontecer porque o Lula já fez a reforma previdenciária do servidor público federal em 2003. Ele acabou com a paridade e a integralidade a partir de 2003. Ou seja, os novos entrantes não podem ultrapassar o teto do INSS. O maior problema está mesmo nos governos estaduais.

Você disse que, para recuperar as finanças públicas, o Pais precisa voltar a crescer. Como fazer isso?

Em termos grosseiros, você pode cutucar a economia por cima ou por baixo. Eu acredito que é mais potente cutucar por baixo, que foi o que o governo Lula fez: valorização do salário mínimo; empréstimo consignado, bolsa família; BPC; LOAS. Com isso, você jogou as classes E e D para a classe C. Elas começaram a consumir e o Brasil passou a crescer, em média, 4% ao ano;

O que se quer fazer desde o Temer, mas de uma forma muito mais forte, é cutucar por cima. Ou seja, atrair investimentos para as privatizações e concessões. Isso é importante. Mas não é tão eficiente quanto cutucar por baixo. Cerca de 65% do PIB, pelo lado da demanda, corresponde ao consumo das famílias; 20% às despesas dos governos e 15% é setor externo. Então, se for para retomar a atividade econômica, eu colocaria minhas fichas em retirar as barreiras do consumo.

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