Argentina afundada em crise e Macri vem ao Brasil falar da Venezuela

O desgastado presidente da Argentina, Maurício Macri, cujo país está mergulhado em profunda crise econômica e social, desembarcou nesta quarta-feira (16) no Brasil para uma visita oficial e foi recebido por Jair Bolsonaro em Brasília. O tema principal do encontro foi a crise, mas não a da Argentina ou a crise do Mercosul, e sim a situação da Venezuela, que se transformou no escape ideal para governos impopulares fugirem de temas espinhosos de seus próprios países.

argentina protesto

Após tomar posse em uma cerimônia esvaziada com poucas lideranças estrangeiras, ver seu governo protagonizar uma série de vexames internacionais e estar sendo alvo de repúdio em vários cantos do mundo, o presidente Jair Bolsonaro estava ansioso pela primeira visita de um chefe de Estado ao Brasil desde que assumiu a presidência em 1o. de janeiro. 

A primeira aparição de Bolsonaro com uma autoridade estrangeira em uma visita oficial a Brasília mostrou um anfitrião com um discurso simplório diante de um convidado mais interessado em abordar a crise da Venezuela do que tratar de temas bilaterais. "(Nicolás) Maduro é um ditador que só procura se perpetuar no poder", disse Macri no Palácio do Planalto, antes de reiterar: "Reconhecemos a Assembleia Nacional como a única instituição legítima". Ambos se declararam a favor do fortalecimento do Mercosul e da aceleração das negociações com a União Europeia. Embora também neste tema, o argentino foi mais entusiasta que o brasileiro.

A proximidade, a tradição e o fato de que Bolsonaro e Macri estarem do lado direito do espectro político, embora tenham uma distância notável, não impediram que o relacionamento começasse de maneira tempestuosa. Foi a primeira reunião cara a cara entre os dois porque o argentino não compareceu à posse de seu colega no dia 1º de janeiro, irritado. A razão: o brasileiro escolheu sua viagem inaugural como presidente para o Chile, país que o inspira politicamente muito mais que a Argentina, o destino tradicional dos mandatários brasileiros. Ao invés de vir a Brasília, ele passava férias na Patagônia. “Essa viagem é o começo para dar um salto em direção ao Mercosul, em direção à confiança”, disse Macri antes do almoço na sede do Ministério das Relações Exteriores.

Quinta-série

No ambiente do almoço, chamou atenção o fato do cerimonial ter nomeado as mesas com nomes de jogadores de futebol brasileiros e argentinos, numa clara referência à animosidade existente entre os dois países quando o assunto é futebol. A "brincadeira" — digna de um estudante da quinta-série — combina bem com o perfil extravagante do novo chefe do Itamaraty.

A assessoria de Macri achou curioso e divulgou as fotos no Instagram do presidente. Pelé, Garrincha, Zico, Maradona e Menotti estavam entre os escolhidos. As imagens dos bastidores também revelaram que os ex-presidentes Fernando Collor e José Sarney foram convidados por Bolsonaro a dividir a mesa com Macri. Uma demonstração de que Bolsonaro já se entrosou com a "velha política", tão difamada na campanha eleitoral.

A grave crise argentina

Apesar das duras críticas à Venezuela, a Argentina tem em comum com o país de Maduro a inflação em alta. Na terra de Maradaona, a inflação anual de 2018 ficou em 47,6%, a maior desde 1991, e lança uma grande sombra de dúvida sobre a capacidade do Governo de cumprir sua meta de inflação de 23% em 2019. No momento, os preços são a variável mais fora do controle no quadro macroeconômico.

Durante a campanha eleitoral que o levou à presidência, no final de 2015, Mauricio Macri afirmou que a inflação era a prova da incapacidade dos governantes de um país. Ele se referia aos aumentos de preços que caracterizaram o fim do mandato de Cristina Kirchner, maquiados na contabilidade nacional, mas evidentes na rua. Macri herdou uma inflação de pouco mais de 20% ao ano. Em 2016 não houve dados oficiais, por causa da chamada "emergência estatística". Em 2017, subiu para 24,8%. E em 2018 estourou, acompanhada de uma crise cambial em relação ao dólar e um déficit comercial que o obrigaram a pedir ajuda ao Fundo Monetário Internacional (FMI).

Argentina e Venezuela, um caso extremo, são os únicos países latino-americanos com os preços fora de controle. Para a Argentina, trata-se de um problema crônico desde 1945, quando as melhorias sociais do peronismo foram financiadas com a impressão de cédulas. Nas décadas seguintes, com exceções ocasionais (como a paridade do peso com o dólar definida por Carlos Menem, que provocou deflação e terminou em colapso econômico), o déficit fiscal levou os Governos a recorrerem regularmente às gráficas do Banco Central. Os preços seguiram quase continuamente para cima e o peso, para baixo.

O que aconteceu em 2018? Primeiro, o Governo Macri abrandou sua meta de inflação para o ano, de 12% para 15%, em nome de sua política de "ajustes graduais". Isso foi considerado um mau sinal pelos investidores, que correram para trocar pesos por dólares. Muitos cidadãos fizeram o mesmo. A desvalorização deu asas à inflação. A dívida externa do Estado voltava a ser perigosamente alta (agora se aproximando de 80% do PIB, o dobro de quando Macri assumiu o cargo), o déficit comercial se tornou galopante e, em maio, com os mercados financeiros internacionais fechados às demandas da Argentina, não houve remédio a não ser recorrer ao FMI e aplicar um ajuste recessivo. Em setembro, foi necessário obter do FMI um aumento no empréstimo, de 50 bilhões de dólares (186 bilhões de reais) para 57 bilhões (213 bilhões de reais), e um período mais curto nos desembolsos.

A partir desse momento, o Banco Central aplicou uma política de juros altíssimos, de até 70%, e empreendeu a retirada de pesos do mercado, a fim de deter a crise cambial. Esse objetivo, no momento, parece ter sido alcançado: o dólar permanece em torno de 37 pesos. A consequência é a recessão. Estima-se que em 2018 a economia tenha se contraído em 2,5% e, se tudo correr bem, em 2019 sofrerá uma nova contração, um pouco mais leve, de 2%.

Agora, a grande questão é se Mauricio Macri será capaz de manter um ajuste tão duro no ano em que disputa a reeleição. Os salários sofreram uma perda de poder de compra próxima a 10%, a mais séria desde o colapso de 2002, e pode-se supor que os sindicatos pressionarão o máximo possível para conseguir um reajuste compatível com a inflação. Macri resistirá à pressão? O FMI exige que o faça. Um aumento salarial generalizado melhoraria as condições de vida dos argentinos (um terço vive na pobreza), mas provavelmente daria novo impulso à inflação e provocaria novas desvalorizações e o retorno ao ponto inicial da atual crise.

O próprio FMI e analistas privados indicam que, se a Argentina cumprir as condições impostas com o empréstimo de setembro, os cidadãos terão que esperar até 2024 para recuperar os níveis de bem-estar (medidos em consumo privado) de 2017. Ou seja, só no final do mandato do próximo presidente, seja Macri ou outro, os supostos benefícios do ajuste atual começariam a ser sentidos.

Com informações do El País e agências