Morte de Dinho: retrato de um drama nacional

Por Walter Sorrentino e Ângela Guimarães*

Dinho Unegro

“Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. (…) A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos.”

No dia 23 de dezembro de 2018, uma abordagem policial em Sorocaba/SP resultou na morte, por disparo de arma de fogo desferido pela PM, de Milton Expedito do Nascimento (Dinho), 33 anos. Dinho foi um jovem negro militante, sem registro de passagem no sistema prisional ou processo judicial, engajado em projetos sociais, trabalhava há oito anos no PROCON. Era da direção da Rádio Comunitária Cultural FM, onde mantinha um programa todos os domingos, tinha forte envolvimento com a cultura hip hop e compunha a Direção Municipal da UNEGRO de Sorocaba.
Relatos sobre o incidente indicam que Dinho teve sua motocicleta assaltada durante o horário de trabalho na rádio, comunicou o fato a Polícia Militar, logo após, através de um aplicativo localizou a motocicleta e foi buscá-la. No retorno de casa encontrou com uma viatura policial e com a morte – dois tiros nas costas. Foi sumariamente assassinado por quem detêm o dever legal de proteger a cidadania da violência e do crime. O perfil social e a conduta de Dinho jamais o colocariam na faixa de risco das potenciais vítimas de um policial em serviço, a cor da sua pele sim.

Não se deve deixar passar em branco tal assassinato de mais um ativista social, como foi o de Mariele Franco até hoje sem apuração. Fatos como esse deveriam provocar profunda comoção e indignação da sociedade brasileira, no entanto, impera um silêncio constrangedor, indicando uma incômoda naturalização da brutalidade, especialmente quando as vitimas são jovens negros, pobres, moradores nas pauperizadas periferias do Brasil. Na verdade, Dinho significa uma minúscula ponta de um drama nacional de altíssima gravidade: o Brasil é o quinto país que mais mata no mundo . Em 2016 alcançou a marca histórica de 62.517 homicídios, segundo informações do Ministério da Saúde (MS), desses, 33.590 são jovens, sendo 94,6% do sexo masculino, deles 77% são negros.

O homicídio de jovens provoca danos irreparáveis às famílias, produz órfãos com baixíssima faixa etária, jovens viúvas responsáveis solitárias pela sua prole, mães sem filhos lutando contra a depressão. A violência é um fator de subdesenvolvimento para o Brasil, gera impacto econômico negativo; estima-se que a cada jovem entre 13 a 25 anos que morre, o valor da perda da capacidade produtiva é de cerca de 550 mil reais. Jogamos anualmente pelos ralos 18.5 bi somente com custos dos homicídios de jovem.

A política de segurança pública no Brasil se mostra fragmentada e acéfala em matéria de solução de homicídio. O Brasil soluciona apenas 6% dos homicídios dolosos, índice entre os três menores do mundo. Comparado com 90% do Reino Unido, 80% da França e 65% dos EUA, denuncia o grave atraso, senão desleixo de sucessivos governos. Segundo pesquisa do Instituto Sou da Paz, 21 estados não sabem quantos casos de homicídios são investigados ou solucionados. Os dados de homicídios informados pelo MS são provas cabais que o Brasil é um país violento, racista e intolerante com os jovens. A Organização Mundial de Saúde considera epidêmicos os índices de homicídios que superem 10 a cada 100.000 habitantes, na Europa variam entre 4 e 5 a cada 100 mil, há regiões no Brasil que chegam a 60 a cada 100 mil habitantes. Vivemos uma espécie de estado de guerra contra e operadores de Estado praticam um genocídio contra parcelas do povo.

Uma sociedade historicamente violenta regulada por ordenamentos jurídicos avançados
A história brasileira é marcada por 388 anos de escravidão oficial, além da superexploração do trabalho, o fenômeno mais presente e permanente em regimes escravistas é a violência. A Abolição não se preocupou com o destino da massa escravizada e a República, dominada inicialmente pelos barões do café, antigos benificiários do trabalho escravo, não incorporou à cidadania os negros e os pobres. A violência foi um instrumento de coerção utilizado para manter sob controle a massa desempregada, despossuída e abandonada. A elite escravista para manter sua hegemonia na nova sociedade impôs um projeto de Nação opressivo e desigual.

Os setores conservadores no Brasil gozam há algum tempo da primazia em relação ao debate sobre segurança pública. O crescimento atual da extrema direita, justaposto com a crise de segurança contribuiu com a popularização da máxima que “bandido bom é bandido morto”. Logo, o senso comum brasileiro, ao contrário da lei, aceita homicídio de delinquente. Ao matar, basta qualificar a vítima como criminosa para legitimar o ato. Uma sociedade gestada na escravidão da maioria do seu povo tem capacidade atávica de assimilar a violência e a desigualdade. Daí o triste registro de o Brasil ser um dos países mais desiguais do planeta e ter 11 das 30 cidades mais violentas do mundo .

A Constituição de 1988 estabelece um contrato social que respeita a vida e não acolhe a pena de morte, nela consagramos a República, a Democracia, e o Estado de Direito, a garantia da liberdade e dos direitos humanos individuais e coletivos. É uma Constituição avançada, continua atual lutar por sua defesa integral, no que respeita ao Estado Democrático de Direito, como um caminho justo para a construção de um novo Brasil. A rigor, observar essa Carta reconhecida e legitimada pelo povo brasileiro, no seu fundamento quanto à dignidade da pessoa humana e objetivo de constituir uma nação livre e justa, contribui para superar os graves impasses que tencionam a sociedade brasileira, em especial a violência e a segurança.

Política integrada de segurança pública com envolvimento da sociedade civil

É patente que a solução ao drama da violência que massacra o povo e extermina a juventude negra passa pela libertação do Brasil do julgo do rentismo imposto pelo 1% mais ricos, da sanha do imperialismo e do aumento da nossa capacidade de eleger governos comprometidos com um projeto de desenvolvimento nacional que incorpore o povo e combata as assimetrias socioeconômicas enraizadas em nossa sociedade.

Para população pobre a vitória de Bolsonaro se constitui numa grave derrota, a expectativa é de recrudescimento dos assassinatos. Bolsonaro representa a antítese da vida, advoga uma política deliberadamente contra os trabalhadores, os pobres e a Nação. Não tem apreço pela democracia e a paz. Está disposto a armar as pessoas (71,1% dos homicídios no Brasil são praticados com arma de fogo) e fustigar o aumento da violência da Polícia. Já se fala abertamente em licença para os policiais e os “cidadãos de bem” matarem, e se propõe a alteração da maioridade penal.

O Brasil entrou, assim, num período gravemente adverso e é imperioso manter a defesa de políticas sociais na área da educação, saúde, cultura, esporte e lazer; defender políticas que gerem empregos e renda do trabalho, bem como oportunidades para empreender. Trabalhar para que estados, municípios e União constituam um sistema de segurança pública integrado, que acolha boas práticas, faça correções de legislações , garanta a dignidade humana, preserve a vida e se submeta a Lei e a Constituição.

Dadas as raízes históricas e os valores culturais que caracterizam a violência no Brasil é fundamental promover a participação da sociedade civil na construção do sistema de segurança pública compartilhado e desconstruir através de um massivo debate público as chaves mentais e sociopolíticas que transigem com a violência. Somente com o povo jogo solucionaremos esse grave impasse.