O amor e Soledad Barrett

Por Urariano Mota*

Soledad Barret

Neste 8 de janeiro, data oficial dos jornais para o assassinato de Soledad Barrett, aqui vai um dos trechos do romance “A mais longa duração da juventude”, onde a sua pessoa é modelo:

“Por que Soledad caiu na esparrela do Cabo Anselmo, nesse vulgaríssimo laço? Eu não posso, ninguém pode escrever um teorema das relações humanas. Para os sentimentos não há um conjunto de frases lógicas, num crescendo que se revela ao fim um desastre. Numa tragédia, CQD, Como Queríamos Demonstrar. Mas a indeterminação do que sentimos, matemática ou mecânica, não é obstáculo para uma tentativa de entendimento. Quero dizer, por força de meditação: havia em Soledad um democratismo, um populismo no amor que era reflexo de suas escolhas políticas. Não sou mecânico ou cruel, porque falo à luz da viva experiência. Nos anos da ditadura, os militantes mais ardorosos queriam imprimir no coração o imediato de suas convicções partidárias. Às vezes nem era preciso gravar a impressão do panfleto, porque já estava inscrito. Quero dizer, havia mistura de sentimentos, vários, dos mais piedosos da formação cristã a palavras de ordem. Ora, se queríamos um mundo subvertido, onde os explorados fossem os novos soberanos do mundo, então era natural que amássemos a pessoa à margem dos bem-nascidos. Desse ponto até o fracasso da relação, do sentimento, e da escolha, era um descer a ladeira. Pois o coração submetido ao que lhe é exterior revolta-se, lento e indeciso a princípio, depois grita contra as soluções de força. Parece óbvio agora, mas antes não era, quando o amor ao povo significava bem casar com uma operária, porque operária. Sabemos hoje, seria menos desastroso o casamento de pequeno-burgueses que possuíssem igual referência. Mas se amava a opção política, que em boa metafísica virava ideologia de exaltação da pessoa. Às vezes, a destruição da fantasia não demorava. Às vezes, se arrastava por anos.

Em Soledad, além do natural sentimento do tempo, que era pôr a revolução antes e acima de tudo, havia uma herança libertária do anarquismo, o que não era menos revolucionário, mas desejava mais que um programa racional. Ou seja, aquilo que o seu coração exigia não era pequeno, vinha a ser a libertação absoluta, conforme se desejava no ideário dos anarquistas libertários. E descia para ela como uma herança de rebeldia o pensamento do avô, o grande escritor e político Rafael Barrett: ‘Enquanto a dor não te queime as entranhas, enquanto um dia de fome e abandono – pelo menos um dia – não te vomite para a vasta humanidade, não a compreenderás’. E para tão alta ambição, que não encontrava fácil pessoas com quem comungar, eis que surge Anselmo, o anjo que vestia as roupas da promessa conforme o desejo. O que ela quisesse. Ele seria o amante ideal, se ela desejasse um companheiro misto de gêneros. Ele seria o companheiro ideal, se ela criticasse o ordenamento da tradição, ‘careta’, dos velhos partidos comunistas. Ele seria o mais bravo, se o mundo se transformasse pelas armas. Ele seria a voz da experiência, se ela desejasse conhecer o Brasil revolucionário. Ele seria o porto seguro, se ela quisesse descansar por momentos da batalha. Em resumo, ele seria como foi, o canalha, pela concordância absoluta com todos os desejos de Soledad, a quem ele tudo prometia. Um amante ideal e companheiro sem preocupações materiais de sobrevivência, porque Daniel guardava dinheiro expropriado em assaltos, tão sério e confiável era.

Ninguém alcançava o Pai – o conjunto da revolução libertária – sem passar por Anselmo. Daí a razão de ele sempre andar de carro com ‘gasolina pela boca’, como lembraria o militante Karl Marx, ao falar do tanque cheio do fusca usado por Daniel. Imagine-se tal privilégio em um tempo de militantes sem dinheiro até para uma passagem de ônibus. Mas com Daniel, não, a infraestrutura econômica do comando oculto dos guerrilheiros era perfeita. Daí que ele criou a butique Mafalda – possuía dinheiro para tanto – porque a revolução financiava a tomada do Brasil a partir do Nordeste. Era como uma nova invasão holandesa. Não se pense que semelhante delírio fosse digno de risos. Esse foi um tempo em que o riso mais eloquente residia nos dentes da caveira. Os erros mais ridículos traziam a morte. Mas é claro, tão convictos do acerto nos achávamos, que só seríamos abalados pela tragédia da destruição física. Abalados, mas sem ter ainda a percepção do erro, pois a um real tão espinhoso, complexo, respondíamos com o desejo. Simples, não? Anselmo, no personagem Daniel, vestia-se como o melhor amigo e companheiro de Soledad.

Indivíduo fino e escorregadio, que não sai do seu papel, ele falou a uma repórter numa entrevista recente. A jornalista, de bom coração e magoada, lhe fez a pergunta:

– Mas você amava Soledad?

Ele, recebendo a susto o golpe da pergunta, procura ganhar tempo :

– Eu?…. Olha, é um sentimento difícil pra mim. Ela era uma pessoa linda, poeta, falava várias línguas… O que aconteceu com ela não foi culpa minha, entende? Foi ela quem se condenou, não fui eu. Por mim, ela estava fora do massacre.

– E por que você não a avisou?

– Está louca? Eu ia ser morto se abrisse pra ela o que eu sabia.

– Morto por quem? Por ela ou pela repressão?

– Por ela, claro. Sol … ela era uma pessoa muito ideológica. Cruel, com aquela carinha de santa.

– Ela era cruel? – a repórter pergunta tendo na lembrança a imagem do corpo de Soledad no necrotério. – Cruel?

– Você nem imagina do que são capazes os comunistas. Eles matam mesmo.

– Você está vivo.

– Sim, só Deus sabe como. Eu fui o sorteado pra sobreviver.

A repórter para e não quer saber se ele atribui à roleta da vida o seu plano sistemático de infiltração, entrega de companheiros e permanentes novas quedas. Ele, o sorteado. A ironia não deve descer a esse ponto. A repórter se preocupa com algo, para ela, mais essencial.

– Mas você amava Soledad?

– Olha… eu amava Soledad. Mas um amor à minha maneira, entende?

– Como assim, à sua maneira?

– Assim… eu tinha afeição, amor por ela. Mas o amor pra mim é uma coisa prática, entende?

– Entendo. Sacrificar a sua vida pela amada, nunca.

– Isso é romantismo.

– E você se ama, Anselmo?

– Claro. Eu sou um cara normal”.

Do romance “A mais longa duração da juventude”