A dura realidade da pobreza nos Estados Unidos

Sub-classe americana permanente

António Santos – Jornal Avante!

EUA

Dizer, dos EUA, que há hipermercados mais caros e outros mais baratos é um eufemismo. O que existe é um apartheid, em que a grande distribuição está rigidamente segregada por classe social. É tão improvável encontrar um capitalista a encher o carrinho no Walmart, conhecido pela comida processada, barata e de baixa qualidade, como é inverosímil ver um trabalhador do Walmart a fazer as suas compras no Whole Foods ou no Fresh Market, onde todos os produtos têm etiqueta "orgânico", "biológico", "verde", "vegano", "local" ou "artesanal". As diferenças de preços são tão grandes, e a oferta tão segmentada, que há poucos barômetros sociais tão afinados como a competição entre as cadeias de distribuição. É por isso com iguais medidas de interesse e preocupação que nos devemos debruçar sobre a fabulosa proliferação das lojas de "tudo a um dólar" nos EUA.

O conceito dispensa explicações: são lojas onde todos os produtos à venda custam exatamente um dólar. Os preços imbatíveis são conseguidos através da compra da sobre-produção das fábricas e dos excedentes das outras cadeias, mas principalmente graças à às diminutas quantidades e à péssima qualidade dos produtos, não raramente tóxicos e perigosos para a saúde. À entrada de algumas destas lojas, uma gravação ativada automaticamente relembra os clientes que serão "processados até às últimas consequências" se tentarem roubar. Mas nem por isso há menos clientes: o alvo destas lojas não são os operários que fazem as compras no Walmart, mas os trabalhadores desempregados, doentes, despejados e, quase sempre, desesperados.

Há hoje cerca de 30 mil "dollar stores" nos EUA, mais do que o número somado de estabelecimentos da Starbucks e da Walmart. Ao passo que muitas das antigas cadeias fecham superfícies para reduzir custos, só as duas principais empresas de "tudo a um dólar", a Dollar General e a Dollar Tree, têm planos para inaugurar mais 20 mil lojas. Para atingir esta meta, abrem quatro lojas por dia e, só em 2018, a Dollar General inaugurou 900 novas lojas. Segundo um estudo do Institute for Local Self-reliance, citado pela Newsweek, as chamadas "dollar stores" que não oferecem fruta, nem vegetais nem comida fresca, vendem hoje mais alimentos do que algumas das principais cadeias de distribuição de alimentos como a Whole Foods. Segundo o mesmo estudo, as "dollar stores" são hoje o principal abastecedor das casas dos norte-americanos que sobrevivem abaixo do limiar da pobreza, mais de 50 milhões de pessoas.

O fenómeno não é novo: os lucros da Dollar General, da Dollar Tree e da Family Dollar crescem consecutivamente há 27 anos, mas algo mudou na última década: só entre 2010 e 2015 a facturação das principais cadeias de "dollar stores" cresceu de 30,4 para 45,3 bilhões de dólares e desde 2015 até 2018, em apenas três anos, este valor explodiu para 75,9 bilhões de dólares.

Numa entrevista recente ao Wall Street Journal, o presidente executivo da Dollar General, Todd Vasos, explicou que "a economia vai continuar a criar mais daquilo que é a nossa clientela (…). Estamos a pôr lojas hoje [em zonas] que há talvez cinco anos estavam no limiar de estarem no nosso segmento social e demográfico". Comentando inócua e tepidamente essa entrevista, o analista financeiro da Bloomberg, Garrick Brown, explicaria mais tarde com inadvertida clareza o que o que o dono da Dollar General queria dizer: "Essencialmente, as dollar stores estão a apostar forte no desenvolvimento de uma sub-classe americana permanente."