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Ronaldo C. de Brito: Natal, pão de ló e Coca-cola

Eu tinha cinco anos quando escutei pela primeira vez a palavra Natal. Meus pais haviam se mudado para o Crato, no Cariri cearense, para que os filhos pudessem estudar. Antes, morávamos no sertão dos Inhamuns, uma das três regiões por onde começou a colonização do Ceará, numa fazenda de plantio de algodão e criatório de gado. Lá, ninguém falava noite de Natal. Dizíamos noite de Festas, o que me parece bem diferente.

Natal - Foto: Fotofolia

Toda comemoração consistia numa mesa de bolos de mandioca, pães de ló de goma, sequilhos e roupa nova. Morávamos distante da cidade de Saboeiro e não íamos à Missa do Galo. Imaginava um galo de plumagem exuberante empoleirado no altar, celebrando a missa festiva. Os afilhados vinham tomar a bênção e receber os presentes dos padrinhos, quase sempre dinheiro, ou uma caixa de sabonete enrolada em papel de seda.

Em novembro, passavam os mascates com as malas de quinquilharias, caixas mágicas cheias de belezas coloridas, interditadas aos machos. Eu olhava de longe os fetiches femininos, deslumbrado com espelhos, fitas, bicos, rendas, batons, ruges, travessas de cabelo, diademas, pulseiras, anéis, perfumes em vidrinhos minúsculos, cortes de tecidos finos, agulhas, linhas e bordados. As mulheres gastavam o dinheiro ajuntado em um ano, nos adornos que realçavam suas belezas agrestes. Dois meses de trabalheira fabricando queijo, se transformavam num anelzinho de ouro catorze, com pedrinha de rubi falso, fabricado por um ourives de Juazeiro. Na Festa, mesmo que não saíssem de casa, ostentavam um mimo dourado, pendente das orelhas ou brilhando no dedo anular. E os maridos, austeros como os lajedos, deleitavam-se com o aroma adocicado de um “extrato francês”, no corpo das amadas que normalmente cheiravam a vacas e cabras.

O Crato era bem diferente. Tinha o cinema, as modas cariocas trazidas pela revista O Cruzeiro e pelos jornais da Atlântida, com um atraso de meses. Falava-se de Papai Noel, árvores de Natal, e as pessoas mais sofisticadas recobriam galhos secos com capuchos de algodão, simulando neve, no mês mais quente do ano, quando só faltávamos morrer de calor ou devorados pelas muriçocas. Numa casa e noutra, em réplicas de pinheiro penduravam bolas de aljofre, anjinhos, estrelas, bengalas e bonecos de neve. No galho mais alto colocavam um enfeite pontiagudo, recoberto de areia prateada. Caríssimo, custava o equivalente a duas cargas de rapadura. Os donos da preciosidade estufavam o peito, orgulhosos.

Uma única casa possuía instalação elétrica com vinte e quatro lampadinhas, que acendiam e apagavam. Todos íamos ver. Pedíamos licença para entrar na sala e admirar de boca aberta a maravilha. Tentávamos desvendar o comando misterioso, infalível, piscando, acendendo, apagando, acendendo, apagando… Até cansarmos os olhos, vencidos pela tecnologia importada da capital.

Tamanho luxo somente para as famílias ricas, de hábitos citadinos, gente que até possuía carro importado dos Estados Unidos, e radiola com som estéreo de alta fidelidade, onde escutavam os discos de Glenn Miller e Nat King Cole. A cultura americana entrava de cheio nas nossas vidas, através do cinema. Surgiam os primeiros arremedos de uma juventude transviada, filha dos novos ricos de um mundo em transformação. E com os novos ricos e os aviões da Real, os chicletes, os óculos escuros, motos, cadilaques rabo-de-peixe, e a Coca-Cola, tomada quente porque quase não existia geladeira, causando arrotos complicados, impossíveis de disfarçar. Elvis Presley, James Dean e Marilyn Monroe proliferavam nas praças, aposentando o estilo dos rapazes e moças de boa família do campo, excelentes partidos para casamentos, e dos bancários de gravata do Banco do Brasil.

Vindo de um mundo medieval ibérico-sertanejo, que se mantivera fechado e imutável por trezentos anos, seduzi-me pela cultura teatral dos pobres, representada nos arrabaldes da cidade. A lavadeira da nossa casa, filha de um cabo de polícia, levou-me para ver as cenas que mais impressionaram a minha vida: um enforcado no porão da cadeia e a representação da Lapinha, com Jesus, José, Maria, Pastoras, Anjo, Beija-flor e Borboleta. Desejei iniciar-me naquele espetáculo humilde, mas novamente foi-me interditado por não ser brinquedo de homens. Para amenizar as frustrações, ganhei de presente dois pares de asas de Borboleta e de Anjo, que nunca usei. Sem utilidade, acabaram cobertas de poeira num quarto de despejos.

Trocamos o desterro sertanejo pelas luzes de uma cidade provinciana. Chegamos no rebuliço do Natal, ingressando nos ritos da Igreja Católica e nas lojas de comércio, bem maiores do que as malas dos caixeiros viajantes. Instruíram-nos sobre Papai Noel, um velhinho bondoso que presenteava as crianças na Noite de Festas. Meu pai e minha mãe, ansiosos em se igualarem aos vizinhos, compraram os nossos presentes e os esconderam.

Onde bota-los, na noite de Natal? Não existia lareira na casa, nem pinheiro, nem chaminé. Dormíamos em redes, costume herdado dos antepassados índios, que os avós portugueses massacraram. Como podíamos arremedar as tradições europeias, se nem possuíamos cama? Meu pai, homem prático e decidido, achou que os presentes deveriam ir mesmo para debaixo das redes. E foram colocados ali, depois que adormecemos. Fiel aos costumes dos ancestrais Inhamuns, que tinham por hábito mijar na rede até os dezoito anos, estraguei a sanfona de papelão que custara tão caro. E um futuro musical promissor.