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50 anos do AI-5: memórias e sequelas

A jornalista Rose Nogueira viu censores entrando no seu trabalho e sofreu tortura durante a ditadura militar. 50 anos depois, enxerga sequelas de 68 no Brasil atual.

Por Isabella Juventino*
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Rose Nogueira ficha - Foto: Reprodução

O quadro fixado na parede homenageia, em nome da Comissão Nacional da Verdade, trabalhadores e sindicalistas da Grande São Paulo que sofreram a repressão da ditadura militar. “Verdade, memória, justiça e reparação”. Abaixo e em letras garrafais, o nome de uma das vítimas, Rose Nogueira. A jornalista foi presa pelo regime em 4 de novembro de 1969, e aos 72 anos, conserva a memória de quando foi torturada no período mais repressivo da ditadura, época em que vigorava o Ato Institucional n° 5 (AI-5), que completa 50 anos em 2018.

Sentada em um sofá enquanto acende um cigarro, Rose relembra o 13 de dezembro de 1968, quando chegou à redação da Folha da Tarde para mais um dia de trabalho e deparou-se com uma novidade que não viraria notícia, pelo contrário, limitaria o que fosse para as páginas do jornal. “Eu cheguei na redação como todos e tava lá um cara, um senhor. Ele já tinha mais idade que a gente. E quem era? O censor. Dentro da redação. Você não pode imaginar o que é isso”, conta a jornalista. Mais tarde, naquele dia, o locutor Aldir José Alberto Curi anunciaria, em rede nacional, o AI-5.

O texto do quinto ato estabelecido pelo governo dava liberdade para o presidente fechar o Congresso Nacional, suspender direitos políticos, cassar mandatos, tirava o direito ao habeas corpus, e impedia o julgamento pelo Judiciário sobre os atos com base no próprio AI-5. O presidente Costa e Silva fechou o Congresso por tempo indeterminado no mesmo dia e a polícia e Forças Armadas foram colocadas de prontidão para evitar a mobilização popular, que havia se ampliado entre 1967 e 1968, em uma série de episódios que tencionaram o governo, como a Passeata dos Cem Mil – em resposta à violência policial contra populares e estudantes no Rio de Janeiro – e o surgimento de grupos de luta armada, como a Aliança de Libertação Nacional (ALN), comandada por Carlos Marighella.

Rose e seu então marido Luiz Roberto Clauset faziam parte do apoio logístico da ALN, e foram presos por emprestar seu apartamento para reuniões do grupo. “Eu não tinha essa militância, porque quem tinha estava na clandestinidade. Nós tínhamos vida legal. E formávamos, junto com várias outras pessoas, o apoio logístico da ALN. Era preciso ter gente com vida legal para apoiar, para esconder e para ajudar o pessoal que estava na clandestinidade e já estava sendo procurado, porque ali já era o começo de 1969 e as pessoas já estavam sendo torturadas e mortas. De 1964 a 1968 isso também aconteceu, mas a partir de 1968 é que foi muito mais forte.”

Sua prisão aconteceu no mesmo dia da morte de Marighella e no dia em que seu filho, Carlos Guilherme Clauset, completava 33 dias. Sob ameaças do delegado Sérgio Fleury de levá-lo ao juizado de menores, Rose conseguiu que Cacá ficasse com sua sogra, mas foi levada ao Dops (Departamento de Ordem Política e Social) para ser torturada. “Eu tinha leite e eles eram tarados. Com 23 anos, era bonitinha, só que tinha acabado de parir e eles passaram a me chamar de Miss Brasil.”, conta.

Os interrogatórios eram feitos por Fleury enquanto ela estava nua. “Eles tiravam a roupa, e o incomodava o leite que escorria. Atrapalhava o tesão dele. E aí me deu uma injeção para cortar o leite, aqui na frente, porque eu virei e disse que não ia tomar”, explica enquanto aponta para a perna direita, onde a injeção foi aplicada, e acrescenta: “tomar aquela injeção foi um dos piores horrores, fora o que eles faziam, mas eu acho que aquilo foi mais forte, porque me separava do meu filho. Enquanto eu tivesse leite sabia que tinha um bebê, era a minha ligação com ele.”

“Você pode achar uma loucura, mas chegar no Presídio Tiradentes era um alívio”, conta Rose. Após passar 50 dias no Dops, ela foi levada ao Presídio Tiradentes, onde ficavam os presos políticos. A ala feminina era conhecida como Torre das Donzelas, e nos próximos sete meses Rose dividiria a cela com mais de 50 mulheres, dentre elas a ex-presidente Dilma Roussef.

Segundo Rose, “a Dilma era só uma moça estudiosa. Ela era estudante de Economia e no presídio o que eu mais lembro dela é que ela estudava sem parar.” No documentário “Torre das Donzelas”, Dilma relembra o período em que ficou presa por quase três anos, juntamente com depoimentos de mulheres que também passaram por aquelas celas e corredores. “Nos demos felicidade na pior situação possível. Nós fugimos disso, de uma visão penitente da cadeia”, relata Dilma. Vencedor das categorias Melhor Documentário Brasileiro, na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, e Melhor Diretora de Documentário, no Festival do Rio, Susanna Lira retrata a união e solidariedade construídas entre as presas políticas.

A expansão do movimento hippie nas décadas de 1960 e 1970 também colaborou para alimentar um sentimento de comunidade entre elas. As mulheres faziam peças de crochê e barbante, davam para as famílias venderem e conseguirem algum dinheiro. “Os meninos faziam colares de miçanga.”, lembra Rose. Elas faziam bolsas, tapetes, coletes e os ponchos de crochê eram produzidos em maior quantidade e um dos que eram mais usados. “A moda hippie foi muito bonita.”, afirma, enquanto mostra as fotos do livro “Tiradentes, um Presídio da Ditadura”, apontando-as com as unhas pintadas de vermelho.

Após sair do presídio, Rose ainda ficou sob liberdade vigiada. Durante dois anos precisou comparecer à Auditoria Militar, localizada na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, na região centrla de São Paulo, toda sexta-feira às 13h, para assinar um livro e comprovar que estava na capital paulista. Só foi julgada e absolvida em 1972.

Apesar dos tempos difíceis, a vaidade sempre esteve presente, seja nas unhas vermelhas, nas roupas hippies ou no blazer costurado por ela mesma, que Marília Gabriela usou no programa TV Mulher, em que Rose foi editora-chefe. Com estreia em abril de 1980, exibido pela Globo com três horas de duração, foi “o primeiro programa televisivo voltado para a mulher moderna”.

Mais uma vez, a jornalista precisou lidar com a censura prévia, no programa que era “totalmente contra eles, e nós falávamos ‘somos feministas’, e não podia falar sobre feminismo.” Dessa vez, a censora era uma mulher, e, ao questionar sobre o conteúdo do programa, Rose mandou darem um recado “eu mandei dizer pra ela que eu lamentava muito que uma mulher exercesse o cargo que ela tinha. Isso não era cargo pra mulher, que nós éramos feministas, e uma mulher não pode censurar a outra.”

Rose vê sequelas daquele período em seu corpo ainda hoje, e atribui como consequência disso a sua esterilidade. “Nunca mais pude ter filhos”. Além disso, encontra relações entre os tempos que ficaram marcados em sua memória e o contexto político que vivemos atualmente.

“Eu me lembro na prisão lá no Dops. Chegou uma professora que ficou uma semana presa – eles prendiam e a pessoa ficava uma semana, três dias, levava uns tapas e punha na rua, era tão louco que você não acredita. O pai de um aluno foi dedura-la ao Dops dizendo que ela estava ensinando comunismo, aí foram prendê-la. Sabe o que ela estava ensinando? Feudalismo, que é uma das partes da História que você é obrigado a saber: História Geral. E não adiantava ela dizer ‘mas isso é de séculos atrás’, eles não quiseram saber. Aí acho que foram consultar e falaram ‘epa, feudalismo não tem nada a ver com comunismo’ e ela foi solta”, lembra Rose.

A jornalista cita duas disciplinas que tornaram-se obrigatórias nas escolas a partir de 1969, quando Filosofia e Sociologia foram retiradas. A Organização Social e Política Brasileira (OSPB) e Educação Moral e Cívica (EMC) ficaram marcadas por ensinarem de acordo com a ideologia do regime autoritário, ao exaltar o nacionalismo e retirar o processo de reflexão e análise dos fatos, inclusive os históricos. Para Rose, a OSPB e EMC lembram o projeto Escola Sem Partido, cujo objetivo é “eliminar a doutrinação ideológica nas escolas”.

Rose também compara o Brasil do “ame-o ou deixe-o”, um dos slogans mais famosos do regime, ao discurso do recém-eleito presidente Jair Bolsonaro (PSL). Para ela, Bolsonaro “revive o ame-o ou deixe-o, e ame-o é amar do ponto de vista dele, é lamber a bota dele. Isso é uma coisa típica da Ditadura.”

Além disso, critica o posicionamento do futuro presidente, que já afirmou ser “favorável à tortura” e homenageou o coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, conhecido por ter participado de atos repressivos com violência, durante seu voto a favor do impeachment de Dilma Rousseff. “Como alguém pode ser a favor da tortura? Tortura é um crime universal, de lesa-humanidade. É imprescritível e inafiançável.”

No relatório final da Comissão Nacional da Verdade, dentre as 1.300 páginas que detalham métodos de tortura, execuções e ocultações de cadáveres, detenções ilegais e desaparecimentos forçados, o depoimento de Rose está presente.

Dentre os 20 mil brasileiros torturados entre 1964 e 1965, segundo o III Programa de Direitos Humanos da Presidência da República, publicado em 2010, Rose também participa da estatística.

Entretanto, suas ideias se alinham com a de Rousseau na frase “o homem nasce bom mas a sociedade o corrompe.” Com o fim da ditadura, Rose presidiu o grupo Tortura Nunca Mais e carrega consigo a esperança. “Todos nós tivemos três quilos um dia. Todos nós fomos abraçados por uma mulher, todos nós mamamos numa mulher o leite humano, o meu cortaram”, e completa: “O homem não nasceu pra ser mau. O homem nasceu pra ser bom. Todos nós nascemos bons.”