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“Infiltrado na Klan” – Males da pureza racial

Filme do cineasta afro-estadunidense Spike Lee desvenda as entranhas da Ku Klux Klan em drama policial cheio de suspense, espionagem e humor.
 
Por Cloves Geraldo*

 

Ifiltrado na Klan - Divulgação

Filmes do afro-estadunidense Spike Lee (1957) costumam tratar com ácido humor temas fortes como o racismo e a convivência entre afros e caucasianos em Nova York, como microcosmo do que ocorre na maioria dos estados dos EUA. Foi assim em “Faça a coisa Certa (1989)”, onde eles circulavam pelas ruas e frequentavam juntos bares e pizzarias. Porém, neste “Infiltrado na Klan”, ele prefere desvendar a centenária organização extremista Ku Klux Klan, a partir da biografia de seu compatriota, o policial Ron Stallworth (John David Washington), que nela se infiltrou nos anos 70.

Com seus co-roteiristas Charlie Wachtel, David Rabinowitz e Kevin Wilmontt, ele mescla drama policial, suspense e espionagem numa articulada trama já estruturada por Stallworth em seu livro. Coube a eles sustentá-las em quatro subtramas, três delas na cidade de Colorado Springs: I – Na agitada Delegacia Policial; II – Na fazenda onde a direção local da Klan se reunia; III – Na sede do Grêmio Estudantil dos Negros. E na IV configurou as conversas via telefone entre Stallworth e o Líder Nacional da Klan, David Duke (Topher Grace), estando o primeiro em Colorado Springs, no Colorado, e o segundo em Charlotte Ville, na Virgínia.

Embora àquela altura, o movimento pelos direitos civis começasse a perder a força, devido aos assassinatos de Medgar Evers (1925/1963), em 12/06/1963, Malcolm X (1925/1965), em 21/02/1965, e Martin Luther King (1929/1968), em 04/04/1968. E só o Partido dos Panteras Negras estava em franca atividade. E em Colorado Springs, o Grêmio Estudantil dos Negros, sob a presidência da jovem Patrice Dumas (Laura Harrier), promovia debates em defesa das liberdades civis. Um de seus palestrantes foi o ativista afro Jerome Turner (Harry Belafonte) sobre o racismo.

Klan busca a pureza racial

Havia sempre a suspeita de que a Ku Klux Khan, criada pela extrema direita em 1865, na cidade de Palaski, no estado do Tennessee, perpetraria outro ataque às lideranças do Movimento pelos Direitos Civis, em Colorado Springs. Ainda que fosse um jovem agente policial, Stallworth convenceu o delegado Bridge (Robert John Burke) a encarregá-lo de investigar tal ameaça. O que incluía perigosa e temerária infiltração para identificar as estruturas, os líderes e os tipos de perigo que a Klan representava de fato. A questão, em si, era como chegar ao seu centro de irradiação terrorista.

Seu plano desenvolve uma trama digna dos grandes filmes policiais, de espionagem e suspense (Rififi, 1956, de Jules Dassin (1911/2008). E Lee, para não fugir aos seus temas naturais, acrescenta-lhe forte sequências sobre o racismo, através das conversas de Stallworth com Duque, líder da Klan. Uma de suas frases ao telefone demonstra com clareza o que pretendia àquela época a organização terrorista. Queria com toda a convicção de extremista de direita ter um país, no caso os EUA, “com a pureza dos brancos emigrados da Europa” desde a descoberta a colonização inglesa.

Isto significava a exclusão dos afros-descendentes e dos imigrantes de origem judaica. Em suas abertas conversas com Stallworth, ele e seus liderados não poupavam nenhum dos dois. Concentravam neles toda sua ira e a urgência de exterminá-los. Naquele momento, no entanto, as ações da organização racista em Colorado Springs se atinham às atividades do Grêmio Estudantil dos Negros. Mas o ardil montado por Stallworth era tão camuflado que o próprio dirigente da Klan local Walter Breachway (Ryan Eggold) nada desconfiava. Ao invés disso, atinha-se às disputas internas.

Racismo de Connie beira a insanidade

As atitudes racistas dos dirigentes locais beiravam à insanidade. Principalmente o casal Felix (Jasper Pääkkönen) e Connie Kendrickson (Ashlie Atkinson), sempre a desconfiar de tudo e exigir punição aos afros. Não esperavam o momento para, literalmente, exterminá-los. Chegam a desconfiar de que houvesse um infiltrado entre eles. A sequência da prova de tiro entre os membros mais antigos da Klan e os noviços que deveriam ser testados põe o espectador tenso e irado a um só tempo. Tanto devido ao ódio externado por Felix, quanto a ansiedade de Connie para executar o plano.

Não deixa de ser recorrente ao papel da Klan nos anos 70, época da ação e da biografia de Stallworth, as sequências dos cavaleiros de compridas batas brancas, com touca de dois furos para os olhos. Elas remetem às cavalgadas da irmandade dos klans durante a guerra civil estadunidense, a chamada Guerra da Secessão (1861/1865), perseguindo escravos a cavalo e os amarrando em árvores e queimando-os. Imagens do clássico “O nascimento de uma Nação (1915)”, de David Wark Griffith (1875/1948), apreciadas pelos membros da organização extremista ainda hoje.

O ácido humor de Lee emerge ao mostrá-los em situações ridículas, como os gritinhos e risinhos de Connie e a doentia desconfiança de Felix de qualquer estranho. Ela não perde a chance de dizer que não vê a hora para entrar em ação. E ele por ser louco por armas e examinar em detalhes as informações sobre Flip (Adam Driver), o recém cooptado. Desta forma, a tensão cresce e o suspense acelera. Deve-se muito à competência de Lee na direção dos atores. Vê-se isto pelo Stallworth, de John David Washington, cheio de truques, e o Flip Zimmermann, de Adam Driver, cheio de nuances e matreirice.

Lee evita o artificialismo

O mais interessante neste “Infiltrado na Klan” é o uso da dubiedade, do duplo construído por Lee. Com habilidade, ele evitou o artificialismo no qual outro diretor menos atilado poderia cair. E se utiliza tão só da voz de Stallworth e das entonações de Flip para despistar qualquer identificação que seria fatal para a investigação. Sem contar que este é o esteio que sustenta toda a trama. Às vezes, o espectador teme pela vida deles, mas como se trata de uma narrativa baseada em fatos reais, sabe-se que ela funcionou a contento. Ainda mais porque a Klan nada checou, de fato.

Com estas estruturações dramáticas, Lee pôde introduzir o interesse amoroso entre Stallworth e Patrice, sem se desviar do tema central. As investigações feitas pela polícia de Colorado Springs terminam por colocá-los no centro da trama. É elogiável o fechamento do arco dramático da trama, nem sempre percebido pelo espectador que, na maioria das vezes, atenta mais para o tema central. E as sub-tramas sempre terminam por se fechar com ele, tornando-se um único fio narrativo. Lee o faz aqui ao trazer Duke para uma comemoração na cidade e, assim, tudo converge para o desfecho.

Este tipo de recurso de trama e narrativa tem aqui outra boa construção. Elas convergem para o desfecho, sem que a mocinha seja ameaçada pela Klan desde o início. Ainda que Patrice surja quando se defronta com Stallworth, ela só reaparece nas sequências no auditório do grêmio estudantil e em seus esparsos encontros com ele. Lee não revela ao espectador sua importância para o desfecho. Ela é a jovem afro, inteligente e corajosa, que tem ao seu lado o mocinho também afro, ao invés do herói caucasiano. Mas é também uma ativista pelos direitos civis dos afros e, portanto, uma líder em potencial.

Ataque da Ku klux klan remete ao terrorismo

Conta muito para isto, a estruturação do roteiro, caso contrário, Lee ficaria preso às construções de Stallworth, em sua biografia. Mesmo nas adaptações, o diretor e seus co-roteiristas têm de fazer sua própria leitura para prender o espectador na história contada com imagens. Os vilões neste “Infiltrado na Klain” são Duke e seus comparsas Felix, Walter e Connie, mais perigosos do que qualquer outro grupo extremista, cujo objetivo é imposição supremacia branca através do terror. Lee mantém até o final seus alvos, como se quisesse prolongar a tensão do espectador.

As sequências do ataque são aterrorizantes para quem as assiste, porquanto configuram seu cotidiano nos jornais da TV. Os choques de veículos, a perseguição ao terrorista e os bloqueios feitos pelas viaturas policiais assemelham-se à sucessão de atentados flagrados nas ruas de Paris e Londres. É de uma realidade extrema. Orquestrar todas as sequências e cenas leva um bom tempo. Lee e seu diretor de fotografia, Chayse Irvin, filmam de câmera baixa, pegando ângulos que dão a exata dimensão do ataque letal desfechado pela Klan. O impacto é aterrorizante.

Em suma se trata de um filme brotado da realidade, com admirável contribuição cinematográfica para as novas gerações entenderem o perigo representado pelo racismo e a exclusão dos afros e, porque não, das mulheres, dos segmentos LGBT e demais minorias. Lee, cuja filmografia inclui a adaptação da biografia de Malcolm X (1992),um dos líderes da luta pelos direitos civis, inclui este seu “Infiltrado na Klan”, premiado pelo Júri do Festival de Cannes de 2018 na galeria dos grandes filmes sobre o racismo nos EUA. Não se trata apenas disso, mas também de sua grande obra.

Infiltrado na Klan. (BlackkKlansman), EUA. Drama policial, suspense, espionagem. 2018. 136 minutos. Trilha sonora: Terence Blanchard. Montagem: Barry Alexander Brown. Fotografia: Chayse Irvin. Roteiro: Spike Lee, Charlie Wachtel, David Rabinowitz e Kevin Wilmont. Direção: Spike Lee. Elenco: John David Washington, Adam Driver, Laura Harrier, Topher Grace, Ashlie Atkinson, Harry Belafonte, Jasper Pääkkonen.

Assista o trailer: