O “marxismo cultural” e a Ku-Klux-Klan da falsa moralidade

Este é tempo de partido, tempo de homens partidos — Carlos Drummond de Andrade.

Por Osvaldo Bertolino 




Marx e Engels

Poucas vezes na história do Brasil se falou e se escreveu tanto a palavra “marxismo” como nos dias atuais. Há uma verdadeira cruzada capitaneada pelos futuros ministros Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e Ricardo Vélez Rodriguez (Educação), além do próprio presidente eleito Jair Bolsonaro, para falsificar esse conceito, amplamente reproduzida pelo seu séquito. Para eles, há uma onda de perversão na sociedade que, à falta de melhor definição, atende pelo nome de “marxismo cultural”, que seria uma imaginária trama teórica do comunista italiano Antônio Gramsci.

O famoso orador romano Marco Túlio Cícero — para quem uma boa história precisa responder às perguntas quem? (quis/persona), o quê? (quid/factum), onde? (ubi/locus), como? (quem admodum/modus), quando? (quando/tempus), com que meios ou instrumentos? (quibus adminiculis/facultas) e por quê? (cur/causa) — dizia que Roma era um assunto sobre o qual não se devia pedir nem receber informações, a fim de evitar aborrecimentos. Eis aí a definição de como funciona uma ditadura, o molde perfeito para esses "teóricos" do "marxismo cultural".

Recordo a citação para dizer que essa formulação bolsonarista tem a presunção de ignorar a sabedoria humana ao conferir a si própria o título e as credenciais de senhora do bem e do mal, do que convém ou não convém ao país. É uma espécie de Ku-Klux-Klan da falsa moralidade, uma ojeriza ao pensamento avançado, humanista, teoria baseada em características e fenômenos de um país que eles imaginam, muito diverso do país real. Algo muito igual ao movimento golpista que se formou no pré-1964. São as mesmas faces, tangendo os mesmos velhíssimos ideais.

São fantasias e fantasmagorias que não se destinam a descobrir, orientar, provar, mas… Se destinam a que precisamente? A sofismar, a mistificar e mitificar, a ludibriar. Nessa pregação, o delírio teorizante atinge o auge. Como a presunção é o traço mais evidente dos responsáveis por essa formulação, eles pensam que podem vencer pelo cansaço do prolixo. Pode-se dizer que são nominalista; se a realidade — onde coisas e fenômenos estão há muito nominados — não corresponde à sua tese, muda-se o nome das coisas e fenômenos.

Pastel de vento

Pois saibam os que não sabiam que esse gosto pelo nome dos que se presumem detentores da verdade absoluta chega à limitação da liberdade de opinião. São eles que mandam e acabou a história. Não há mediação, tampouco os elementos da realidade histórica. O nome dessas trovoadas já existe, sem concurso do Ministério da Cultura: é terrorismo ideológico. De propósito, esses senhores de sua semântica esvaziam o conteúdo das informações para pôr no lugar frases retorcidas da sua tese falsa. Vazio igual só o daqueles pastéis que a velhinha vendia na feira, apregoando: “Pastéis de camarão!” O comprador se aproxima, pega um, paga. Na hora de comer, diz: “Mas, minha senhora, não achei camarão nenhum!” Ela responde: “O senhor sabe como é, uns gostam, outros não gostam, uns podem, outros não, por isso não ponho.”

Quem come o pastel do “marxismo cultural”? É um pastel de vento, ou vento de pastel. É o estardalhaço natural de quem falsifica os fatos — principalmente quando lhe faltam glórias próprias, por serem desinteressados nos reais problemas nacionais, em auscultar o coração do povo, em ler e entender os processos sociais. Ignoram inclusive direitos que estão na Constituição e em outras cartas. E Ruy Barbosa deixou escrito que a Constituição não é roupa que se recorte para ajustá-la às medidas deste ou daquele interesse. No fundo, eles querem impor a sua lei e a sua ordem totalitárias.

A lei e a ordem, para essa gente, são os seus preconceitos antidemocráticos, sustentados pela ideologia dominante. "Na lei, os burgueses precisam dar-se uma expressão universal precisamente enquanto dominam como classe", escreveu Karl Marx. As teorias de Marx são visitadas em todas as partes para se compreender o que se passa atualmente, confirmando as palavras de Engels em seu funeral, segundo as quais o nome e a obra do mais famoso pensador alemão atravessariam os séculos.

Padre Vieira

Seu pensamento enfrentou e venceu diferentes fixações fanáticas. Quando não vencem pelos ataques, contudo, apelam para a indiferença em relação à sua alma — a dialética, na definição de Vladimir Lênin. A dificuldade está em procurar compreender o marxismo com espírito científico, isento de paixões e sem a carga irracional de ódio, herdada em boa parte de preconceitos incutidos por anos e anos de anticomunismo estéril.

Mesmo quando ele não é excluído da categoria de fenômeno social — o marxismo é ensinado até nas universidades norte-americanas —, procuram a todo custo destituí-lo de sua alma. É assim que os espíritos se fecham ao seu conhecimento, possivelmente com medo de a ele se converter. Para compreendê-lo, é preciso compreender a sua essência revolucionária. Trocando em miúdos: para compreender a realidade, é preciso pensar a realidade. Pensar é apreender os fatos pelo pensamento e compreendê-los como processo em contradição — a mola do movimento real das coisas. Logo, se a realidade é dialética e se pensar é apreender a realidade, pensar é apreender dialeticamente os fatos.

Podemos, nesse vazio de inteligência bolsonarista, nos basear nas palavras do Padre Vieira, no “Sermão da Sexagésima”, onde se vê a causa de o povo não acreditar nessa pregação recheada de ameaças ou promessas, uma discurseira que põe palavras onde faltam idéias. Lá se diz: “As razões não hão de ser enxertadas, hão de ser nascidas. O pregar não é recitar. As razões próprias nascem do entendimento, as alheias vão pegadas à memória, e os homens não se convencem pela memória, senão pelo entendimento. (…) O que sai da boca, para nos ouvidos, o que nasce do juízo, penetra e convence o entendimento.”