Transformações na programação do Memorial da América Latina

Fundado em 1989, o Memorial da América Latina, que deveria ser o centro de integração dos países do subcontinente, nasceu de uma motivação política. De acordo com a pesquisa da dissertação de mestrado Memorial da América Latina: Sentido dos Discursos de Fundação de Luana Nascimento, o monumento foi o grande primeiro projeto do, na época governador de São Paulo, Orestes Quércia, que tinha a intenção de se projetar nacionalmente para, mais tarde, concorrer à Presidência da República.

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"O rival dele nessa disputa era o criador do Instituto Latino-Americano, André Franco Montoro. Quércia o sobrepõe com a construção do Memorial da América Latina, que possuía mais investimentos”.  Ele, apesar da visibilidade alcançada, não conseguiu ser eleito para o cargo de presidente, ficando em quarto lugar nas eleições de 1994.

O responsável escolhido para confeccionar o projeto da construção foi o renomado arquiteto Oscar Niemeyer. Ele convidou o antropólogo Darcy Ribeiro para prestar consultoria cultural e pensar o programa que seria oferecido pela instituição. Seu passado como exilado político da Ditadura Militar permitiu que ele entrasse em contato com as outras culturas que cercam o Brasil, pois chegou a morar em países como Uruguai, Venezuela e México. Como inspiração, Darcy usou a Casa de las Américas, em Cuba, e imaginou um centro de integração artística e cultural, com a missão de integrar os povos latino americanos. “Naquela época não existia Youtube. Era trabalhoso escutar artistas de outros países. O Memorial era como se fosse um ponto de encontro da América Latina”.

A missão institucional escolhida para representar a construção foi a de incentivar uma maior integração entre o Brasil e os outros países da América Latina, uma vez que o relacionamento entre essas duas partes é, de longa data, difícil. “Durante o século 19, havia um distanciamento. Eram países que não se conversavam. O Brasil era um império e o resto do subcontinente era formado por várias repúblicas”, afirma Luana. “Não existia uma integração e isso perdurou por algum tempo”. O Memorial está inserido em um contexto em que há uma série de tentativas de aproximação, como o Mercosul, que também surge no final do século 20.

“No início, Darcy Ribeiro convidou vários intelectuais para contribuírem com a programação. Entre eles estavam o historiador Carlos Guilherme Mota e o sociólogo Antonio Candido. Muitas pessoas participaram desse projeto.  A ideia era de que ele fosse um centro de excelência cultural e intelectual”. Ao longo dos anos, no entanto, o Memorial da América Latina se distanciou cada vez mais de sua missão institucional a medida que sua programação mudou lentamente de orientação, se aproximando dos interesses dos gestores escolhidos pelo governo do Estado de São Paulo. “A construção virou um espaço de locação”.

Inauguração do Memorial da América Latina em 18 de março de 1989. Foto: Sérgio Amaral/Estadão

Agenda de aluguel de espaço

As atividades deveriam ser pensadas com o objetivo de promover intercâmbio documental, acadêmico e cultural. Mas, sob justificativa de aumentar o número de visitantes e a rentabilidade, a programação deixou de seguir tal orientação. “Na agenda do Memorial, há feiras gastronômicas, encontro de cosplays, comemoração do ano novo chinês, festa do milho e exposições como a da Vila do Chaves e do Castelo Rá-tim-bum, programações externas que não dizem respeito à temática latino-americana”. O Memorial da América Latina também reduziu a sua quantidade de atividade acadêmicas e o afastamento da atuação dos intelectuais é crescente.  

Essa mudança na agenda não garantiu, entretanto, a prosperidade da instituição. De acordo com a pesquisa feita por Luana, o número de funcionários caiu drasticamente desde os anos 90, indo de 394 para 34. Tudo isso, diz ela, é um reflexo do momento vivenciado pelo Brasil. “Vivemos a extinção temporária do Ministério da Cultura. É sintomático que as instituições tenham esse desmonte. A cultura na política é um ponto central de atritos”.

Para Luana, os conflitos acerca desse tema e o modo pouco democrático da escolha de atrações do Memorial podem ser bastante prejudiciais à população em geral. “Vejo como um impacto negativo a perda da possibilidade da população de São Paulo participar de uma programação cultural, que teria um conteúdo pensado, refletido e combinado em conjunto”, defende. “Não há nenhum problema em fazer uma feira gastronômica, mas se restringir a isso empobrece culturalmente o estado, que é uma referência cultural para a América Latina e tem uma população imensa”, completa. “Perde-se a oportunidade de aproveitar esse status e de expandir o nosso papel, pois estamos alheios às mudanças culturais, perdendo em questão de qualidade de gestão cultural. Fazer uma agenda de aluguel de espaço é muito empobrecedor para um órgão que foi pensado por tantas pessoas ilustres”.