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Em época de obscurantismo, é bom visitar clássicos

Fahrenheit 451 (Trad. Cid Knipel. São Paulo, Ed. Globo, 2003), de Ray Bradbury já nasceu clássico. Adaptado para o cinema por François Truffaut, trata de um futuro não muito distante, quando os livros (metáforas do saber), proibidos, serão incendiados junto com seus leitores. Nesse futuro sombrio as televisões ocuparão paredes inteiras das residências e exercerão uma ditadura midiática cujo peso, nestes ano de 2015, conhecemos muito bem.

Por Jeosafá F. Gonçalves*

Fahrenheita 451

O livro é uma contundente alegoria contra regimes autoritários, para os quais nada pode haver de mais perigoso do que certos tipos de livros – e nada mais conveniente e eficaz do que a uniformização do pensamento humano. O que está em questão, aqui, é menos a ficção científica e mais a denúncia contra a manipulação das consciências, contra a censura e contra todos os totalitarismos, particularmente os que impedem o livre exercício do pensamento.

O livro, na edição em questão, conta ao início com uma breve biografia do autor e com um esclarecedor prefácio de Manuel da Costa Pinto. Ao final, escritos pelo próprio autor, dois contundentes textos alertam o leitor para práticas nocivas de censura que, apoiadas em senso comum ou em preconceitos, resultam no mau hábito de se amputar textos literários destinados à escola.

Na história cheia de simbolismos e alegorias, um bombeiro – numa época em que eles só são úteis para pôr fogo em livros – vê a fé em sua profissão paulatinamente ruir. A amizade com uma jovem vizinha, participante de uma comunidade clandestina de leitores, acrescenta dúvidas a sua insegurança acerca da ordem incendiária vigente.

Num mundo em que a ordem totalitária impera e as televisões exercem um poder esmagador, só resta a clandestinidade e a marginalidade àqueles que não se encaixam nos padrões impostos a ferro e a fogo. Forçados a viver num mundo sem livros, os leitores mais radicais passam a se refugiar em áreas excluídas da urbe e a decorar obras inteiras, de modo a que o patrimônio intelectual seja preservado ao máximo, enquanto cada um viver.

Diz um personagem, após uma hecatombe nuclear que, durando um segundo, faz toda a cidade opressora desaparecer do mapa:

“Agora, vamos subir o rio (…). E nos concentrar num só pensamento: não somos importantes, não somos nada. Algum dia, a carga que estamos carregando [os livros que decoraram inteiros, como fossem bibliotecas vivas e ambulantes] conosco poderá ajudar alguém. Mas, mesmo quando tínhamos os livros às mãos, muito tempo atrás, não usávamos o que tirávamos deles. Continuávamos a insultar os mortos. Continuávamos a cuspir nos túmulos de todos os infelizes que morreram antes de nós. Durante a próxima semana iremos encontrar muitas pessoas solitárias, tal como no próximo mês e no próximo ano. E quando perguntarem o que estamos fazendo, poderemos dizer: estamos nos lembrando”.

Lembrar-se no caso, não da catástrofe nuclear, mas de cada palavra, cada vírgula do texto que, proibido em versão impressa, foi decorado, como o fazem os atores de teatro.

Em certo sentido, o autor deste clássico, de Crônicas Marcianas e Algo Sinistro Vem por Aí nem sabia que estava inventando, em 1953, antes mesmo da internet, uma versão muito mais sofisticada do que o e-book: o human-book, destinado a reconstituir por meio de sua memória o patrimônio humano destruído pela estandartização – catástrofe só possível em razão de uma humanidade que não resistiu a ela e a preferiu à liberdade.

Comparar o romance com o filme de François Truffaut é inevitável, até porque, embora ambos sejam primorosos, há enormes diferenças entre um e outro.