Sem categoria

Mestre Bimba: a capoeira rompe as fronteiras e ganha o mundo

Misto de artes marciais, esporte e dança, a prática deixou de ser ilegal graças a esse baiano, para anos mais tarde ser reconhecida pela Unesco como Patrimônio Imaterial da Humanidade

Por Alberto López*

Mestre Bimba, o homem que abriu as portas para o ‘boom’ mundial da capoeira - Reprodução da internet

Coube a Mestre Bimba preservar os segredos da capoeira, uma atividade considerada ilegal um século atrás por ser associada à marginalidade, e transformá-la numa prática tradicional, com todo o reconhecimento social e cultural do qual hoje desfruta. Não foi fácil para alguém que provinha de uma família humilde e numerosa e que precisou realizar diferentes trabalhos quando jovem para sobreviver, antes de descobrir a capoeira e dedicar toda a sua vida a estudá-la, aperfeiçoá-la recuperando seus valores tradicionais e ensiná-la, fundando a primeira academia do mundo.
Desde então é considerado o pai e ícone da capoeira regional. Um Doodle do Google homenageia nesta sexta-feira, 23, os 119 anos de seu nascimento.

A capoeira, com mais de 500 anos de história, deve a Mestre Bimba que milhões de pessoas em todo o mundo a pratiquem na atualidade, conquistando novos adeptos onde chega, por desenvolver tanto a atividade física como a mental, a coordenação, o ritmo e, obviamente, a disciplina de um código de conduta que ele mesmo implantou.

Desenvolvida por escravos como uma forma de preservar as tradições culturais africanas, a capoeira lhes permitia se manterem ágeis e fortes em meio a um sistema opressor que tratava de anulá-los como indivíduos. A combinação de equilíbrio e flexibilidade com o ritmo e a força da dança, assim como a velocidade e a astúcia da luta, junto com a música, lhe conferem um atrativo que outras atividades não têm.

A palavra capoeira tem diferentes acepções: uma deles provém de uma palavra congolesa que significa dar piruetas e lutar, e que descreve os movimentos de um galo durante uma briga. Apesar de ser censurada e considerada ilegal durante anos, hoje continua viva graças ao impulso de Mestre Bimba, que conseguiu que se tornasse um esporte nacional no Brasil, e ao legado dele que hoje se espalha por todo o mundo.

Manoel dos Reis Machado nasceu em Salvador, em 23 de novembro de 1899. Seu nome se perdeu assim que nasceu, já que desde então começou a ser chamado de Bimba. Tudo por causa de uma aposta entre sua mãe e a parteira durante o trabalho de parto: sua mãe apostava que seria uma menina, e a parteira previa um menino. Ao ser entregue à mãe com o primeiro grito, a parteira disse: “É um menino, olhe o bimba dele”.

Bimba trabalhou na adolescência e juventude como garimpeiro, carpinteiro, almoxarife, estivador e até como condutor de charretes para poder sobreviver numa família em que era o caçula de 25 irmãos. Mas, quando descobriu a capoeira, ficou tão seduzido por ela que nunca mais a abandonou. Começou a praticar a variedade conhecida como capoeira Angola, aos 12 anos, graças a um africano chamado Bentinho. Essa variedade foi a que depois ensinaria durante uma década, antes de desenvolver seu próprio estilo, conhecido como tradicional.

Nos anos em que Bimba se aproximou da capoeira, no começo do século passado, ainda era perseguida pelas autoridades, que a associavam a marginais, razão pela qual jogá-la em público acarretava até três meses da prisão. Umas décadas antes, o castigo era receber de 300 açoites e inclusive a deportação.


Quando completou 18 anos, Bimba quis se aprofundar na capoeira e percebeu que ela tinha perdido sua eficácia como arte marcial, preservando-se como mera atividade folclórica. Foi então que decidiu restaurar os valores tradicionais e os movimentos da antiga capoeira, acrescentando passos de um extinto estilo de luta africana chamado batuque, que ele tinha aprendido com seu pai, um reconhecido campeão dessa disciplina. Também acrescentou movimentos criados por ele mesmo, tornando-se a primeira pessoa a desenvolver um método de ensino para facilitar o aprendizado, já que até então a capoeira se aprendia só observando e praticando. Foi assim que Bimba começou o desenvolvimento da capoeira regional.

Bimba, que também começou a ser reconhecido com o título de Mestre, observou que a capoeira precisaria de um código de ética para poder recuperar sua reputação e ser aceita, espalhando-se a outros âmbitos além dos ambientes marginais, que eram os únicos a reconhecerem-na como parte do patrimônio do país. Os praticantes da variedade regional do Mestre Bimba deviam estar sempre apresentáveis, usando uniformes brancos e limpos, com lenços coloridos indicando sua gradação. Também incluiu conjuntos coreografados de movimentos e introduziu projeções e varreduras, o que lhe conferia uma característica que a distingue do outro tipo principal de capoeira do Brasil, o Angola.

Esse código de honra também incluía regras como não fumar nem beber álcool; que as habilidades só deviam ser demonstradas dentro da roda, embora permitindo o elemento surpresa no caso de uma briga real; que durante o treino o capoeirista deveria se centrar na tarefa; praticar ao máximo cada movimento; que os jovens capoeiristas tivessem boas notas na escola…

Bimba também estabeleceu seus princípios da capoeira como parte do método de ensino. Entre eles: gingar sempre, que significa se manter em constante movimento durante o jogo, já que a ginga é o movimento básico da capoeira; esquivar sempre para evadir os ataques do oponente; manter um ponto fixo no chão, porque os saltos acrobáticos deixam o capoeirista vulnerável; jogar de acordo com o ritmo estabelecido pelo berimbau e respeitar o oponente quando este já não puder se defender de um movimento de ataque.

Mestre Bimba foi capaz de criar várias tradições e rituais relacionados à capoeira para alicerçar sua metodologia de ensino: empregava uma cadeira para o treinamento dos principiantes; também a charanga, que é a orquestra da capoeira, composta por um berimbau e dois pandeiros; o canto (quadras e corridos), canções compostas por Bimba para acompanhar o jogo…

Em 1928, Bimba já era suficientemente respeitado para que pudesse questionar o caráter ilegal da capoeira. Era voz corrente que ele a ensinava e que se preocupava em aprofundar em suas raízes e aperfeiçoá-la.

Depois de uma atuação para o governador Juracy Magalhães no palácio da Aclamação, Mestre Bimba finalmente conseguiu convencer as autoridades sobre o valor cultural da prática, pondo fim à sua proibição oficial na década de 1930. Bimba fundou então, em 1932, a primeira escola de capoeira do mundo, a Academia-Escola de Cultura Regional, em Salvador, embora sem mencionar a palavra capoeira no nome, pois ela continuava sendo vista como uma atividade de marginais. Pouco depois, o ensino da sua capoeira foi reconhecido como educação física pela então Secretaria de Educação, Saúde e Assistência Pública.

A escola virou um lugar onde pessoas de todos os âmbitos da sociedade podiam aprender a arte marcial, o que deu à capoeira um ar de respeitabilidade em todos os estratos sociais do Brasil e mudou sua imagem para sempre. Desde então, milhares de pessoas, de políticos a artistas, passando por empresários e pessoas de todas as idades, se aproximaram da capoeira como uma atividade física e esportiva completa.

Em 1936, Bimba desafiou os lutadores de qualquer arte marcial a enfrentarem o seu estilo regional. Disputou quatro combates e ganhou todos. Um ano depois, obteve o certificado que o creditava como formador e registrou sua primeira escola. Em 1942 abriu uma segunda academia de capoeira, e em 1946 teve lugar a primeira exibição pública como uma apresentação folclórica brasileira, além de conseguir que a capoeira se tornasse uma atividade econômica rentável, pela qual seus praticantes podiam ganhar dinheiro de forma honesta com sua arte.

Em julho de 1953, Bimba realizou uma demonstração de capoeira para o então presidente Getúlio Vargas, que declarou: “A capoeira é o único esporte verdadeiramente brasileiro”.

Muitas celebridades brasileiras passaram pela escola de Bimba. Depois do chamado batismo, o Mestre começava a ensinar as técnicas mais avançadas, como o floreio e as sequências de defesa pessoal, o que levava a crer que o aprendizado da capoeira era infinito, embora, como ele mesmo dissesse, “os golpes básicos da capoeira são sete, e desses sete se podem realizar outros sete mais, e assim sucessivamente, sendo aceito qualquer movimento do corpo dentro de uma roda, desde que esteja regido pelo som do berimbau e mantenha o ritmo da ginga”.

Apesar do crescimento exponencial da capoeira, nas duas décadas seguintes Bimba se ressentiu da falta de consideração das autoridades baianas e do descumprimento das promessas de manutenção do apoio às suas escolas. Tomou então a decisão, em 1973, de se mudar para Goiânia, aceitando o convite de um antigo aluno. Ali morreu um ano depois, em 15 de fevereiro de 1974, no Hospital das Clínicas, devido a um derrame cerebral após se sentir indisposto, justamente após uma exibição de capoeira. Tinha 74 anos.

Transformado em um dos homens mais significativos na história da capoeira e em uma das pessoas mais influentes na história das artes marciais no Brasil, seu legado se mantém vivo porque conseguiu recuperar os valores originais dessa prática. Para Bimba, a capoeira deveria ser sempre evitada como briga, pois acreditava que era uma luta de cooperação, em que o jogador mais forte era sempre responsável pelo jogador mais fraco.

Depois da sua morte, um de seus filhos, Mestre Nenel (Manoel Nascimento Machado), assumiu, aos 14 anos, a academia de capoeira do seu pai e continua sendo responsável por seu legado cultural e histórico. Atualmente preside a Escola Filhos de Bimba da Capoeira, mas Mestre Bimba é ainda hoje o mestre mais reconhecido de todos, com direito a títulos honoris causa, como o que lhe foi concedido postumamente em 1996 pela Universidade Federal da Bahia.
Em 2014, a Unesco reconheceu a capoeira como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, o que a situa de maneira oficial, e em nível mundial, como uma das manifestações populares mais expressivas da cultura brasileira.