Por que Brasília votou majoritariamente em Bolsonaro?

"O Distrito Federal (DF) é uma das unidades da federação mais desiguais do Brasil, com forte contraste entre ter a maior renda per capita do país e uma das menores rendas dos mais pobres. Esta realidade socioeconômica projeta uma realidade de forte divisão de classes, e as forças de esquerda, até hoje, não conseguiram formular um projeto efetivamente alternativo, para interferir nesta realidade".

A desigualdade spcial é uma das questões mais graves que Lula precisa combater l Foto Wilson Dias/Agência Brasil

Um velho camarada (Manoel Domingos) me pediu para tentar explicar por que Brasília teve uma maioria conservadora tão esmagadora, que votou em Bolsonaro. Isso envolveria um enorme trabalho de pesquisa, que demandaria mais tempo. Assim, de imediato, o que posso tentar é apresentar alguns dados da realidade brasiliense que, em meu entender, podem ajudar a entender isso, pedindo desculpas por serem apenas insights pessoais desses 26 anos em que sou candango:

A realidade socioeconômica

Em Brasília não há, praticamente, indústrias. Os brasilienses sobrevivem economicamente de: a) serviço público; b) comércio e serviços; c) agronegócio (no Entorno); e d) turismo.

Não temos uma classe operária significativa. O setor mais próximo disso é o de trabalhadores em estabelecimentos comerciais. A desigualdade é enorme. Grande parte da população vive de precários trabalhos temporários e biscates. O Distrito Federal (DF) é uma das unidades da federação mais desiguais do Brasil, com forte contraste entre ter a maior renda per capita do país e uma das menores rendas dos mais pobres. Esta realidade socioeconômica projeta uma realidade de forte divisão de classes, e as forças de esquerda, até hoje, não conseguiram formular um projeto efetivamente alternativo, para interferir nesta realidade.

Os servidores públicos federais formam uma classe média alta fortemente elitizada, recrutada através de concursos públicos em todo o país, que se sente, em geral, superior e desligada do brasiliense comum. Os cargos em comissão são preenchidos por pessoas de todos os Estados, em grande parte sem ligação efetiva com Brasília.

O clientelismo

O governos de Joaquim Roriz (1988/1990, 1991/1995, 1999/2006) deixaram uma marca: a criação de novas cidades satélites e a distribuição gratuita de lotes para a construção de casas, que atraíram pessoas de todos os Estados (principalmente de Goiás, terra do Roriz), fidelizados politicamente a ele e ao seu grupo de direita. O clientelismo também foi utilizado para ganhar favores institucionais e de outros setores, com a distribuição privilegiada de lotes no Lago Paranoá para altos funcionários públicos e pessoas influentes.

A pressão do Entorno sobre os serviços públicos

O Entorno, embora pertença a Goiás e Minas Gerais, foi completamente abandonado por seus governos em matéria de saúde, educação, transportes, etc. Na saúde, por exemplo, os prefeitos das cidades da região priorizam a compra de ambulâncias para transportar pacientes para os hospitais do DF. Isso cria uma forte pressão sobre os serviços públicos do DF, e a queda de qualidade destes pressiona fortemente os governos locais e criam um enorme descontentamento popular. Os dois últimos governadores não conseguiram se reeleger, em grande parte por isso.

O governo Agnelo Queiróz

Apesar de ter conseguido uma série de realizações importantes (enfrentar o cartel dos ônibus e a máfia do jaleco branco, melhorando significativamente o transporte público e o atendimento público hospitalar, por exemplo), o governo Agnelo terminou marcado por seus erros, supostos ou reais, dos quais destaco:

a. A construção de um megaestádio para a Copa do MUndo de 2014 a custo astronômico (que hoje é sub-subutilizado) vista como suntuosidade (em detrimento das necessidades fundamentais) e acusada de ser um foco de corrupção. Embora não tenha sido uma decisão do Agnelo (ele foi licitado e as obras iniciadas no Governo de José Roberto Arruda, como parte do plano da Copa e nos moldes das Arenas que foram construídas em todo o Brasil), foi atribuída a ele.

b. Uma comunicação muito, muito deficiente, que fez as realizações do governo passarem despercebidas à população, e não soube contrapor-se ao cerco midiático contra ele.

c. O governo Agnelo se desgastou fortemente por sua relação política, indispensável à gestão, com uma Câmara Distrital de uma maioria reacionária e corrupta: para viabilizar o apoio da ampla maioria dos parlamentares distritais, transferiu a oposição ao seu governo para dentro dele, desfigurando-o, sem que as forças políticas e os parlamentares beneficiados tivessem ou assumissem qualquer compromisso com ele.

Agnelo foi fragilizado também pela perseguição incessante da mídia, especialmente da Globo, do início ao fim de seu governo, e do Ministério Público (Agnelo até hoje sofre dezenas de processos que eu classificaria como lawfare), que usaram aqui os mesmos métodos usados contra a presidenta Dilma Rousseff no plano nacional. Além disso, o PT nunca absorveu Agnelo como um quadro seu, as suas lideranças sindicais fizeram cerrada oposição a ele, a direção e militância o abandonaram nas eleições e não o defendem até hoje, mesmo quando têm elementos para isso. Agnelo não conseguiu se contrapor a estes problemas, ficando falsamente identificado como um governo ineficiente, e esse desgaste o levou a não conseguir sequer passar para o segundo turno das eleições em que se candidatou à reeleição.

O desgaste do governo Agnelo terminou, objetivamente, provocando o enfraquecimento substancial de dois partidos de esquerda que tinham muita visibilidade aqui: o PCdoB, de onde saiu para ser candidato a governador pelo PT (o Partido vivia em torno de eleger e prestigiar Agnelo e até agora não se recuperou), e o próprio PT local, que sofreu o reflexo desse desgaste (e também não se recuperou minimamente ainda).

Junte-se a isto os demais fatores que atuaram contra a esquerda no cenário nacional e impactaram também aqui fortemente e o quadro resultante é assustador.

No entanto, é importante ressaltar que, com tudo isso, Fernando Haddad teve no Distrito Federal, no 1º turno, 11,87% dos votos, e cresceu para 30,01% no 2º turno, provavelmente a maior “virada” ocorrida em qualquer Estado do Brasil. E isso aconteceu apesar do fato de que nenhum dos dois candidatos a Governador o apoiou (Rodrigo Rollemberg declarou “neutralidade” e se absteve de fazer qualquer campanha presidencial).

Há esperança para Brasília.