Ativistas temem aumento de violação aos direitos humanos com Bolsonaro

Esmeralda Arosemena de Troitiño, vice-presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), é uma senhora acostumada a ouvir relatos de violações e violência desde janeiro de 2016, quando assumiu o posto na Comissão para um período que se encerrará em dezembro de 2019. A experiência em escutar vem de muito antes, desde quando foi membra da Corte Suprema de Justiça do Panamá, presidenta da Sala Penal da mesma corte, e magistrada do Tribunal Superior de Infância e Adolescência.

Esmeralda Arosemena de Troitiño - CIDH

Nesta sexta-feira (9), num auditório na sede da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Esmeralda já estava havia mais de uma hora, sempre em silêncio e com o olhar sério, ouvindo atentamente diversas denúncias de violência, medo e intimidação sofridas por ativistas de direitos humanos no Brasil. Diante do relato de Rute Alonso, da União de Mulheres de São Paulo, a expressão facial de Esmeralda então se transformou. Num abalo, a decepção e a tristeza pareceram superar o olhar até ali compenetrado e firme. 

“O que vai ser da gente? A proposta de voltar pro 'armário' é impossível. A gente passou a vida inteira pra sair dele. A gente quer existir! A gente já tem resistido há muito tempo! A gente quer existir…”, exclamou Rute, com a voz embargada e o choro sendo contido. 

A fala foi o final de um relato rápido, mas contundente, sobre a violência a que estão expostas as mulheres no Brasil, e mais ainda as mulheres homossexuais. Quinto país no mundo com mais assassinatos de mulheres, Rute Alonso denunciou o clima de opressão, os estupros, e o medo da realidade já ruim, ficar ainda pior a partir da posse, em janeiro de 2019, do presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro (PSL). 

Há poucas semanas, contou, duas mulheres foram estupradas no parque Villa-Lobos, zona oeste da capital paulista, sob a mira de um revólver de um homem que ainda dizia: “esse é o Brasil que eu quero”, parafraseando o slogan do presidente eleito. 

A audiência na Unifesp foi aberta a organizações e ativistas de direitos humanos dispostos a relatar e denunciar as mais variadas violações existentes no país. O encontro faz parte de uma agenda, em oito estados brasileiros, que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) ter a dimensão da realidade nacional – um trabalho amplo que não era feito desde 1995.

As oitivas serão reproduzidas em um relatório que a Comissão entregará ao governo brasileiro em poucos meses. As considerações iniciais serão apresentadas no Rio de Janeiro, no próximo dia 12. 

Perseverança 

Violência contra índios, população LGBTI, negros, imigrantes, mulheres, o caos no sistema carcerário, a impunidade na tragédia da boate Kiss (Santa Maria-RS), a luta por memória, verdade e justiça diante dos crimes cometidos pela ditadura civil-militar (1964-1985), foram alguns dos temas relatados durante mais de três horas da audiência. 

Coube a Maria Amélia de Almeida Teles, a Amelinha, reconhecida ativista na longa luta para que o Estado brasileiro reconheça os crimes cometidos pela ditadura, abrir a aguardada reunião.

Amelinha contou um pouco da sua história aos membros da CIDH, e elogiou o trabalho feito pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) da Unifesp, que desde 2014 se dedica ao exame das mais de mil ossadas encontradas em uma vala clandestina no Cemitério de Perus, possivelmente de desaparecidos políticos. E alertou: o trabalho corre risco de acabar no governo de Bolsonaro, conhecido defensor da ditadura e da tortura. 

“Além de continuar nossa luta, queremos poder seguir denunciando a tortura. Queremos que tudo o que foi feito em relação aos desaparecidos, pelos familiares, não se perca. Queremos a garantia de vida, que nossos direitos serão respeitados e que não haja retrocesso. Todas as conquistas foram feitas com muita dificuldade”, afirmou Amelinha, concluindo que a luta pelo acesso aos arquivos militares da ditadura prosseguirá. Ela foi longamente aplaudida de pé pelo público. 

Na sequência foi a vez de Ângela Almeida, viúva do jornalista Luiz Merlino, assassinado pela ditadura em 1971, narrar sua história para a comissão. Falou sobre a morte de seu companheiro sob ordens do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, à época chefe do DOI-Codi, chamado de “herói” por Bolsonaro. 

Ângela falou sobre a tentativa frustrada de responsabilizar Ustra em 2008, seguida da tentativa vitoriosa de responsabilizar o algoz de seu marido numa ação civil, em 2012, vencida em primeira instância. Vitória essa que se transformou em nova derrota no último mês de outubro, quando o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) acatou recurso impetrado pela defesa do coronel, antes dele morrer. Os três desembargadores do tribunal decidiram pelo arquivamento da acusação, sob a alegação de que o crime estava prescrito. Uma justificativa que revoltou familiares e amigos de Merlin. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem jurisprudência segundo a qual crimes de lesa-humanidade, como tortura, não prescrevem em ações civis. 

“Seis anos depois, nesse clima terrível que estamos vivendo, o tribuna 'tirou da gaveta' o recurso”, afirmou a viúva. Ângela não tem dúvida de que o recado passado pelo TJ-SP ao aceitar o recurso de Ustra, é um só: “pode torturar”.

“Estão querendo nos roubar a verdade que já obtivemos nos tribunais. Querem criar uma nova verdade. É preciso que a sociedade brasileira saiba o que foi a ditadura e a tortura. A tortura hoje está banalizada. Uma sociedade que fica indiferente à tortura e aos assassinatos dos pobres, é uma sociedade doente”, definiu. 
O perigo de existir 

Assim como o desabafo de Rute Alonso, da União de Mulheres de São Paulo, o tema da violência contra a população LGBTI também foi exposto por outros militantes de direitos humanos, como Carlos Eduardo Carreira, membro do Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero (GADVS). O advogado alertou a CIDH para os riscos que a população LGBTI corre no Brasil, e a ameaça de retrocessos no governo de Bolsonaro.

Como exemplo, citou a possibilidade da revogação dos direitos civis dessa população, como o casamento civil; o fim de políticas de saúde específicas, como o tratamento hormonal e de HIV; ações em curso no judiciário que proíbem doação de sangue; e projetos que pretendem implementar a chamada “cura gay”, mesmo o homossexualismo não sendo considerado doença pela Organização Mundial de Saúde (OMS) desde 1990. 

“Pelo simples fato de existirmos e amarmos, corremos riscos à nossa vida”, afirmou Carlos Carreira. Para ele, a eleição de Bolsonaro revelou uma sociedade preconceituosa e fascista. “Ninguém nasce racista. Ninguém nasce machista. Ninguém nasce 'lgbtfóbico'. Isso é uma construção social. Então meu apelo é para que as escolas possam tratar do tema.” 

Representando mais de 50% da população brasileira, a população negra no país é alvo de violações constantes e por isso um bastante abordado. Regina Lúcia, do Movimento Negro Unificado (MNU), fundado em 1978, trouxe para a audiência os números de guerra que marcam o genocídio da juventude negra no Brasil – dos 30 mil jovens assassinados em 2016, 70% eram negros.

“Esse genocídio corre o risco de aumentar, porque existe uma chancela do presidente eleito. E no caso de São Paulo é mais ainda, porque o novo governador (João Doria) disse que a polícia vai 'atirar pra matar'. E nós sabemos bem em quem eles vão atirar”, afirmou Regina. “O momento que passamos hoje, é o mais delicado destes 40 anos de existência do movimento.” 

Dizendo não acreditar no Poder Judiciário que, segundo ela, sempre atua “contra a vida e a segurança da população negra”, Regina Lúcia afirmou ter esperança que a comunidade internacional ajude “a segurar a insanidade que as urnas concederam neste país”. 

Durante as mais de três horas de audiência, o medo de que as violações de direitos humanos aumentem a partir da posse do presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro, esteve presente em praticamente todas as falas e denúncias dos ativistas. 

“Tenho que destacar que temos recebido uma altíssima quantidade de posições com essa sensação de não saber o que vai acontecer. Por isso, na minha opinião, é importante termos uma visão da situação do país. Creio que esse é valor do que nos foi expressado, e que representa uma oportunidade para as pessoas fazerem uma reflexão de como estamos. É uma situação que, reconheço, angustiante, de pessoas que tem a sensação de inseguridade em fazer valer os direitos humanos”, analisou Esmeralda Arosemena, ao fim da audiência.