O opróbrio do magistrado

Moro, portanto, quando agride a lei, não é figura isolada na paisagem cinzenta da magistratura brasileira.

Sergio Moro - Foto: Lula Marques / AGPT/Fotos Públicas

O ainda juiz Sérgio Moro, ora a caminho das férias, faz praça de onipotente, durão, inflexível, o que ajuda a bem cuidada construção da imagem de vingador implacável e incorruptível. Os mais velhos e os cinéfilos devem conhecer a saga de Eliot Ness na série “Os intocáveis”, sobre a repressão ao crime na Chicago das primeiras décadas do século passado.

Até aí nada de novo, pois essa é a jactância da média de seus colegas de instância primária, para os quais toga e japona se confundem com isenção. Para esses aprendizes de Savonarolas (em cuja categoria se incluem os procuradores da Lava Jato), certas prescrições constitucionais, como o devido processo legal, não passam de penduricalhos herdados de uma ordem já sem serventia. O ‘novo’ direito se legitima mediante seus resultados.

Um colega de Moro, ex-juiz e oficial da reserva da Marinha feito governador do Rio de Janeiro, não se sabe como, anuncia a violência do Estado como o antídoto da violência da criminalidade, transformando em irmãos siameses o agente da lei e o infrator: “O correto é matar o bandido que está de fuzil.

A polícia vai fazer o correto: vai mirar na cabecinha e…fogo!. Para não ter erro” (Folha de SP, 4/11/18). O juiz insubmisso à lei anuncia sua obra: “Não vai faltar lugar para colocar bandido. Cova, a gente cava, e presídio, se precisar, a gente bota em navio em alto mar”.

Vimos, há pouco, o festival de arbitrariedades encenado por juízes com funções eleitorais, reprimindo, mediante o emprego da força policial, manifestações universitárias de defesa da democracia e de resistência ao fascismo, reduzindo a um nada o inalienável direito à liberdade de expressão.

Já antes, lá atrás, uma juíza de piso havia mandado invadir a Universidade Federal de Santa Catarina e prender seu reitor, que, submetido a vexames na sede da Polícia Federal, e proibido de frequentar a instituição na qual ingressara por concurso, optou por tirar a própria vida. Em outubro último sua morte completou um ano.

Violência similar seria repetida dias depois, contra professores da Universidade Federal de Minas Gerais. Em ambos os casos, a grande vítima é a ordem constitucional, rasgada, achincalhada por quem é pago e bem pago, com salários altos (altíssimos para os padrões nacionais) e regalias antirrepublicanas, como auxílio moradia e auxílio isso e auxílio aquilo, para defendê-la.

Em todos esses casos é golpeada a ordem constitucional democrática.

Moro, portanto, quando agride a lei, não é figura isolada na paisagem cinzenta da magistratura brasileira.

Como a média dos juízes de piso, é acusado de decisões e medidas ilegais, nem sempre corrigidas pelas instâncias superiores do poder judiciário, e jamais corrigidas quando a arbitrariedade visava ou visa a punir o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ou seu partido.

Assim, foi arbitrária e ilegal a divulgação, por ordem sua, de conversas do ex-presidente com a então presidente Dilma Rousseff, preparatória da decisão do judicante ministro Gilmar Mendes – que proibiu, noutra extremada inconstitucionalidade, a nomeação de Lula para a chefia da Casa Civil da presidência da República, abrindo caminho, em operação claramente política, na índole e na sua metodologia, para o impeachment da Presidente.

Impeachment o qual dificilmente seria exitoso se não contasse com a colaboração prestimosa e ativa do STF, que concluiu a obra golpista graças a manobra de sua então presidente, que, manipulando a pauta, postergou a apreciação de pedido de habeas corpus impetrado por Lula face à prisão após decisão condenatória em segunda instância.

Assim, não julgando, manteve Lula preso e impediu sua candidatura, quando liderava as pesquisas de intenção de voto. Assim também deixou livre a estrada para a aventura do capitão. E, não julgando processo em que Bolsonaro é acusado de agressão à deputada Maria do Rosário, processo que dorme nos seus insondáveis escaninhos desde 2014, o STF assegurou a candidatura e assegura a posse do militar.

A politico-partidarização do poder judiciário caminha do teto à base.

Igualmente arbitrária e ilegal foi a decisão de Sérgio Moro de intervir deliberadamente no processo eleitoral, ao liberar para divulgação, a apenas seis dias do pleito, o depoimento/delação do ex-ministro Antonio Palocci, contendo acusações ao ex-presidente Lula e ao PT.

Assim, de forma ostensiva, Moro interveio nas eleições presidenciais, beneficiando um dos candidatos, o capitão finalmente eleito. O convite, nesses termos, deve ser reconhecido como ato de justa gratidão.

Nas circunstâncias, o simples convite do capitão para que Sérgio Moro se transferisse da operação Lava Jato para uma das dependências da Esplanada dos Ministérios já seria suficiente para tisnar com dúvidas a imparcialidade que a ética e a Constituição exigem do juiz.

Essa imparcialidade, porém, se desfaz em frangalhos diante da aceitação da prebenda, pois, é impossível dissociar o gesto do presidente eleito da notória ajuda eleitoral assegurada pela atuação do juiz camicia nera.

Mais ético, na Itália pós-Mãos Limpas, o promotor Antonio Di Prieto teve a dignidade de recusar o convite feito por Berlusconi, cuja ascensão ao poder havia sido propiciada pela operação judiciária de desmonte da chamada ‘classe’ política, matriz em que se mirou a Lava Jato.

E não é só, e é difícil saber o que é mais grave, pois o juiz empresta sua imagem – e com ela a imagem da Justiça brasileira – ao fortalecimento de um governo reiteradamente comprometido com a repressão e a ilegalidade, que anuncia a desnacionalização do País, a estagnação de seu desenvolvimento (entre as primeiras medidas dos aprendizes de feiticeiros está a destruição do BNDES), o desmonte das empresas estatais (a serem postas à venda na bacia das almas), a subordinação dos interesses imediatos do país e do destino de nosso povo ao hegemonismo belicoso dos EUA, a cujo serviço, contra nossos interesses, o capitão eleito já anuncia hostilidades à Venezuela, a Cuba, ao Mercosul (o principal destino de nossas exportações de manufaturados), à China (nosso mais importante parceiro comercial), aos países árabes (principal destino de nossas exportações de proteína animal), aos BRICS… e já cogita do ingresso do Brasil na OTAN, o pacto de guerra liderado por Washington.

Tudo isso depois de anunciar novos acordos militares com os EUA – a ação conjunta de nossas forças armadas na fronteira amazônica, a entrega da base espacial de Alcântara –, depois da entrega do pré-sal, alienando nossa soberania e as expectativas de desenvolvimento autônomo.

Seremos, breve, um imenso Porto Rico, se o capitão e sua coorte de oficiais e juízes e economistas entreguistas não forem detidos em seu afã genuflexório.

Há, porém, no episódio do convite do capitão aceito pelo juiz a grave suspeita, levantada pela imprensa, segundo a qual Sérgio Moro teria sido convidado para o inflacionado Ministério da Justiça não após o pleito, mas durante o processo eleitoral, e, pior de tudo, antes da divulgação, autorizada pelo juiz, relembre-se, da delação de Palocci – recusada pela Procuradoria por falta de provas.

Essa informação foi revelada à imprensa no último dia 31 pelo general Hamilton Mourão, vice do presidente eleito, ao afirmar que o primeiro contato com o juiz de Curitiba, para que assumisse o Ministério da Justiça na futura administração, foi feito pelo anunciado super-ministro Paulo Guedes, “durante a campanha” eleitoral (“O ‘Posto Ipiranga’ contatou Moro”. Elio Gaspari. Folha de SP. 4/11/18).

Neste caso, nosso Catão de pés de barro estaria rompendo com os limites éticos da função pública que exerce em nome da República. Comprovado esse grave desvio ético-profisional, de letalidade inevitável, o juiz ver-se-á sem condições morais de permanecer na magistratura ou de aquartelar-se no Ministério da Justiça na expectativa de vaga prometida para o STF, onde, noutros tempos, pontificaram fortalezas morais como Evandro Lins e Silva, Adauto Lucio Cardoso e Victor Nunes Leal.

Especula-se, mesmo, que o juiz poderá ser candidato à presidência da República se o capitão, como já anunciou, não concorrer à sua própria sucessão.

Em entrevistas antigas, relembradas pela imprensa, o juiz Sérgio Moro dizia que sua eventual passagem para a política clara lançaria dúvidas sobre a integridade de seu trabalho.

Lançou.

Qual é o nome que se costuma dar ao árbitro que, ao final de jogo truncado por faltas contestadas, gols questionados, expulsões e penalidades máximas discutíveis, é carregado nos braços pela torcida do time vencedor?

*Roberto Amaral é cientista político, ex-ministro da Ciência e Tecnologia e ex-presidente do PSB. Autor de Socialismo, morte e ressurreição (ed. Vozes)

Fonte: CartaCapital

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