Cota aumentou em 4 vezes a chance de um negro ter um diploma

Assim como o candidato a presidente Jair Bolsonaro (PSL), muitos brasileiros acreditam que a política de cotas no Brasil é uma medida que divide a população, pois o racismo "não existe". Ou ainda acreditam que se trata de uma 'esmola' à população negra, criando uma vitimização, ao invés de promover a meritocracia, ou seja, fazer com que esse negro tenha acesso a oportunidades por meio de um suposto "mérito".

Por Dayane Santos

Cota para negros na universidade - SEEB/Ba

Todos esses argumentos parecem muito coerentes dentro da lógica do senso comum que diz que "todos são iguais perante a lei". Mas a realidade é bem diferente.

Infelizmente, a nossa sociedade só entende o que está diante de seus olhos e, neste caso, ainda tenta ignorar. Eu sempre digo: quando você for atendido por um médico negro e isso não lhe surpreender, o nosso país venceu as desigualdades raciais. Quando for a um tribunal e ver uma juíza negra e isso não lhe causar surpresa, vencemos a desigualdade racial. Quando for compra um sapato e são confundir uma mulher negra com uma vendedora, vencemos a desigualdade racial.

Há uma centena de exemplos que podem ser citados, mas a premissa é a mesma. E essa mesma direita conservadora que diuturnamente diz que devemos seguir o exemplo norte-americano, não quer adotar uma das medidas que garantiram a inserção do afro-americano na sociedade, mesmo que lá fossem minoria, o que não é o caso do Brasil, onde a maior parte da população é negra ou parda.

Mas podem questionar: o que mudou com a política afirmativa? De acordo com com estudo feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a chance de ter um diploma de graduação aumentou quase quatro vezes para a população negra nas últimas décadas no Brasil.

Em mais de 15 anos desde as primeiras experiências de ações afirmativas no ensino superior, o percentual de pretos e pardos que concluíram a graduação cresceu de 2,2%, em 2000, para 9,3% em 2017.

Esse números mostram que a política afirmativa criou a oportunidade para a população negra que, por meritocracia, fez o dever de casa, estudou e conseguiu se graduar. Sim, porque diferentemente do que o discurso de Bolsonaro e outros possa parecer, a cota é apenas a garantia de ingresso. Não existe cota para aprovação na universidade. É esforço, dedicação e mérito!

Ao defender o fim das políticas afirmativas, Bolsonaro diz que a medida "prejudica o próprio negro". "Você bota cota para negros, a princípio quais negros têm mais facilidade de passar em concurso ou então ser admitido em vestibular? O negro filho de negro bem de vida", afirmou o presidenciável sem apresentar dados que comprovem tal afirmação.

Essa tese evidencia o seu próprio preconceito, pois a proposta da política afirmativa é principalmente promover a inserção do negro, sendo a renda um fator secundário. Portanto, a ideia de que o negro de alta renda não deveria ser beneficiado cai por terra.

Outra tese que se propaga é a de que os cotistas abandonariam a graduação ou que teriam desempenho inferior aos de alunos não cotistas. “Já se verifica que esses estudantes são tão capazes quanto os demais ou ainda têm um desenvolvimento muito melhor. Nesse sentido, não há dúvida da capacidade dos cotistas, porque eles já demonstraram isso e pesquisas também têm revelado”, destacou o professor Manoel Neres, coordenador do Centro de Convivência Negra da UnB.

Outro levantamento feito pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) também evidencia o aumento do número de matrículas de estudantes negros em cursos de graduação.

De acordo com o Censo do Ensino Superior elaborado em 2011, do total de 8 milhões de matrículas, 11% foram feitas por alunos pretos ou pardos. Em 2016, ano do último Censo, o percentual de negros matriculados subiu para 30%.

“A política de cotas foi a grande revolução silenciosa implementada no Brasil e que beneficia toda a sociedade. Em 17 anos, quadruplicou o ingresso de negros na universidade, país nenhum no mundo fez isso com o povo negro. Esse processo sinaliza que há mudanças reais para a comunidade negra”, afirmou o frei David Santos, diretor da Educafro – organização que promove a inclusão de negros e pobres nas universidades por meio de bolsas de estudo – em entrevista à Agência Brasil.

“Antes de falar em igualdade racial, temos que pensar em equidade racial, que exige políticas diferenciadas. Se a política de cotas não for suficiente, ainda que diminua o abismo entre brancos e negros, a gente vai ter que ter outras políticas. Não é possível que esse país continue, depois de 130 anos de abolição da escravatura, com essa imensa lacuna entre negros e brancos”, destacou o professor Nelson Inocêncio, que integra o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Universidade de Brasília (UnB), pioneira na adoção das cotas raciais.

Quando foi implantada, o Plano de Metas para Integração Social, Étnica e Racial aprovado pelo Centro de Ensino, Pesquisa e Extensão da UnB previa que 20% das vagas do vestibular seriam reservadas para estudantes negros, de cor preta ou parda. A política foi adotada a partir do vestibular de 2004, em todos os cursos oferecidos pela universidade.

À época relatora do projeto, a professora do Departamento de Comunicação da UnB Dione Moura conta que a implantação do sistema se deu em meio a muitas resistências e sob críticas de que a política de ação afirmativa poderia criar um conflito racial inexistente no país ou diminuir a qualidade da universidade.

"O projeto das cotas na UnB foi um dos mais desafiantes que eu trabalhei como profissional, cidadã, mulher e negra", diz a professora Dione, apontando que um dos principais desafios foi convencer os veículos de imprensa, a sociedade e a própria academia de que era necessária uma política pública específica para negros e não para a população pobre de forma geral, como defende agora Bolsonaro em sua campanha.

“O Brasil tinha uma ideia de políticas públicas como universalistas, não tinha ideia de políticas regionais, por gênero e raça. O recorte de renda era o único indicador reconhecido como legítimo para ações pontuais. Uma política de ação afirmativa exclusiva para a população negra brasileira foi colocar o dedo na ferida, causou um grande rebuliço”, lembrou Dione, uma das poucas professoras negras da universidade.

Reportagem da Agência Brasil conta a história da antropóloga Natália Maria Alves Machado, integrante da primeira turma de cotistas da UnB, em 2004, e a primeira integrante da sua família a ingressar em uma universidade. Ela avalia que a adoção do sistema foi um marco histórico que levou a sociedade a refletir sobre algumas regras e revisá-las em prol da justiça e dos direitos coletivos.

“Por mais que nossa presença ainda seja diminuta no espaço acadêmico, é emocionante ver muito mais cores, mais formas, corpos, estéticas, símbolos e culturas diversos. Se tornou um espaço muito mais rico e instigante”, diz a hoje mestranda Natália Machado