Dallari rebate ilação de Bolsonaro sobre urnas: 'Pregação por um sistema totalitário'

O candidato do PSL à Presidência da República, Jair Bolsonaro, voltou a lançar suspeitas sobre o sistema eleitoral brasileiro nesta quarta-feira (3). Ele disse que respeita o resultado da eleição, mas desconfia da "lisura" do processo. A declaração vem uma semana depois do candidato dizer que não aceitará o resultado se ele não for o eleito.

Por Dayane Santos

Dallari e Bolsonaro - Reprodução

"Eu desconfio da lisura porque não há uma maneira de você fazer uma auditoria. Vou respeitar o que acontecer por ocasião das eleições, eu não vou é ligar para o Haddad caso ele venha a vencer. Se bem que eu não acredito nisso, está faltando pouco, muito pouco, para nós ganharmos essas eleições no primeiro turno", afirmou Bolsonaro em um vídeo publicado nas redes socais.

Em entrevista ao Portal Vermelho, na véspera do aniversário de 30 anos da Constituição de 1988 (promulgada em 5 de outubro), o professor emérito da Faculdade de Direito da USP, Dalmo Dallari, afirmou que as declarações de Bolsonaro são maliciosas e considerou um desrespeito à Constituição.

“É malicioso e pode levar alguém a acreditar que não adianta votar, que é inútil, o que não é verdadeiro”, enfatizou Dallari, destacando que o voto popular, evidentemente, sofre as influências de fatores diversos, como o próprio fator econômico. “No entanto, até agora não se comprovou uma deturpação da eleição ou deformação da vontade do eleitor por vício do sistema eleitoral. Isso não existe”, repeliu o jurista.

“Com a experiência acumulada, a partir da restauração da democracia, houve também um aperfeiçoamento do sistema eleitoral. Acho que nós avançamos muito e temos um sistema confiável que está refletindo a vontade do povo brasileiro”, completou.

Para Dallari, a declaração de Bolsonaro “chega a ser uma pregação a um sistema totalitário”. “Se for eliminado o sistema eleitoral vai restar a imposição por algum tipo de força, econômica ou militar, que são essencialmente autoritárias. Se há alguma falha ou erro, o que temos que fazer é corrigir, mas que se mostre onde está a falha e o risco”, reafirmou.

No mês passado, a presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Rosa Weber, afirmou que críticas à urna eletrônica são "desconectadas da realidade". O ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), também contestou críticas às urnas, acrescentando que Bolsonaro "sempre foi eleito" por meio desse equipamento.

Respeito à Constituição

Para o jurista Dalmo Dallari, as ilações de Bolsonaro, bem com as declarações de seu vice, o general Hamilton Mourão (PRTB) sobre a realização de uma eventual Constituinte, sem a participação popular, apenas com notáveis escolhidos a dedo, são demonstrações do desrespeito à Carta Magna brasileira. Segundo ele, respeitar a Constituição, mais que um princípio, é uma necessidade do Estado Democrático de Direito. Participante ativo do processo da Constituinte de 1988, Dallari reforça que o voto fortalece no povo a consciência de cidadania e do respeito ao direito e ao dever de cada cidadão.

Dallari diz ainda que A constituição é a garantia de direitos numa sociedade que respeite e pratique sua Constituição, assegurando a estabilidade social, política e jurídica, mesmo em momento de crise e turbulência como o que vivemos.

“O voto é um avanço extremamente importante no sentido da busca de efetivação de uma sociedade democrática, porque nas velhas tradições havia sempre grupos sociais privilegiados e grandes corporações. Com o avanço no sentido democrático é que se introduziu a participação de todo o povo na escolha dos governantes”, disse ele, salientando que o respeito à soberania popular é crucial para a democracia.

“E isso tem implicações ainda mais importantes porque a escolha dos governantes implica a escolha de uma orientação de governo. Implica a opção por um projeto, um programa e por direitos e deveres fundamentais para todo o povo, de modo que é extremamente importante o processo eleitoral”, enfatizou.

Soberania popular

Segundo o jurista, no atual momento do Brasil é preciso que o povo se conscientize da importância do voto e valorize esse gesto. “Não é mera formalidade, mas um ato que tem implicações extremante graves para todo um povo, para os direitos e deveres de todo um povo. É preciso praticar com muita seriedade. É preciso um exame mais minucioso das opções, pois uma das consequências que estamos vendo é que candidatos absolutamente mal preparados e mal orientados se elegem e se reelegem”, lamentou.

Sobre as declarações do general Hamilton Mourão de fazer alterações da Constituição sem a participação popular, Dallari foi categórico: “É absurda essa declaração. É uma tentativa de fugir da Constituição”.

Ele reforçou que a Constituição de 1988 “é essencialmente democrática”, justamente pela intensa participação do povo brasileiro. “Acho um absurdo falar em nova Constituinte. Não tem nenhum sentido. É de má-fé”, acrescentou.

Em 1982, Dallari lançou a obra Constituição e Constituinte, editada originalmente em 1982 e sempre atual. Mas a trajetória do jurista mostra que ele foi além das análises acadêmicas. “Eu fui cacheiro viajante da Constituinte porque não quis me candidatar, pois havia exigência de filiação partidária e queria manter a minha independência como jurista e cidadão. Mas circulei pelo Brasil inteiro e, entre outras coisas, participei da criação do movimento pela participação popular na Constituinte. A partir de 1986 era diretor da Faculdade de Direito da USP e a Constituinte foi instalada em fevereiro de 1987. Criei na faculdade a sala da Constituinte e reuníamos muitas pessoas para que estimular a apresentação de propostas do povo para o projeto de Constituição”, contou.

Ele exemplificou o caráter democrático da Constituinte lembrando a criação da Comissão Especial para receber propostas populares de emendas, tendo como presidente o jurista Afonso Arino de Mello Franco.

“Muitas propostas populares foram apresentadas. Eu mesmo fui portador de propostas das mulheres mineiras para a Constituinte, fui portador de reivindicações dos índios e vi a forte participação do povo brasileiro, evidenciando o caráter absolutamente democrático da Constituinte de 88”, frisou.

Ele lembrou ainda que naquele período a ONU (Organização das Nações Unidas) havia aprovado o Pacto de Direito Humanos, que abrangia os direitos civis e políticos e os direitos econômicos, sociais e culturais. “No Congresso – que deveria confirmar a adesão brasileira – havia muita resistência aos direitos humanos e graças a intensa participação popular, os direitos humanos foram incluídos dentro da Constituição. Não tinha formalizado a adesão aos pactos de direitos humanos, mas já estavam inseridos dentro da Constituição por força popular”, ressaltou