A eleição presidencial e a ameaça fascista

"No ventre de nossa frágil democracia, o fascismo apenas aguarda a hora de emergir, ungido com a legitimidade conferida pelo voto – como se deu nos casos históricos aludidos. Por outro lado, a eleição presidencial de domingo consiste na melhor oportunidade oferecida à cidadania brasileira para fazê-lo abortar, definitivamente."

Por Carlos Frederico Barcellos Guazzelli *

Democracia - Foto: (Alícia Peres/Pacto pela Democracia
“…Nossas ruas estão em tumulto…greves e crime por toda parte…
…. Precisamos de lei e ordem…Sem lei e ordem, a república afundará…
…. Eleja-nos, e nós vamos restaurar a lei e a ordem entre nós…”

Este era, escrito em inglês, o teor de um pôster que um amigo de meu pai, no começo dos anos 1970, comprou em uma livraria nos Estados Unidos e lhe trouxe de presente. Durante muito tempo, ele decorou a parede da sala que eu ocupava no seu escritório de advocacia, quando comecei a trabalhar em meados daquela década. Frequentemente, as pessoas que eu atendia ali, que não conheciam a língua inglesa, pediam-me que lhes traduzissem o conteúdo do escrito; e depois que eu o fazia, quase todas concordavam com seus dizeres.

Só ficavam visivelmente desconcertadas quando eu lhes traduzia, então, a nota constante, entre parênteses, ao final do texto reproduzido no cartaz: “…trecho de discurso de campanha de Adolf Hitler, em Hamburgo, em 1933…”.

Passados mais de quarenta anos, esta lembrança perde o tom anedótico e pessoal para ilustrar aspecto essencial do discurso político fascista, não por acaso adotado, desde sempre, pelo candidato que ainda hoje ponteia as pesquisas da intenção de voto para a eleição presidencial que se avizinha. Trata-se do apelo à lei e à ordem, tema central no ideário do fascismo – já quando ele surgiu, na Itália, nos anos 20 do século passado, e em suas outras manifestações na Europa naquele período, inclusive na Alemanha nazista.

Os estudiosos do discurso político ensinam que ele é tecido, sempre, a partir da construção de “antagonismos”, tarefa por meio da qual são articulados, no imaginário dos destinatários, significados por eles socialmente experimentados. Isto quer dizer que o discurso não “inventa”, ao contrário, manipula sentidos reais, existentes, embora dispersos, na realidade social – que por seu intermédio são reunidos e organizados em função de seus fins.

É o que ocorreu nos exemplos históricos citados: Mussolini, Hitler e seus seguidores, à base da construção discursiva de sujeitos antagônicos – os “inimigos do povo”, a saber: criminosos, desordeiros, vadios, ciganos, mendigos, enfim, todos os indivíduos e grupos arredios à ordem – obtiveram o crescente apoio de parcelas expressivas da população de seus países. As quais, convém enfatizar, efetivamente experimentavam à época a sensação de insegurança decorrente da forte desorganização social e econômica que lhes foi imposta após a Primeira Guerra Mundial, e de suas perversas sequelas: inflação descontrolada, desemprego, desabastecimento, fome e violência.

Cabe lembrar que este antagonismo primário do fascismo engloba, também, outro tipo de “desordeiro” – na verdade, o seu alvo precípuo e preferencial: o comunista, ou de uma maneira geral, o esquerdista, o mais perigoso de todos, que não só é infenso à ordem burguesa, como quer destruí-la.

Deve-se reconhecer que o conceito de antagonismo é constitutivo do discurso político em geral, não apenas na sua manifestação de extrema direita. No entanto, o que caracteriza singularmente o fascismo é a rejeição absoluta e frontal à noção de conflito, ao contrário do que ocorre, por exemplo, tanto no liberalismo como no marxismo. De fato, nas formulações teóricas destes decorrentes, a idéia de conflito é essencial – seja para estabelecer os processos de sua superação, pela via dos instrumentos da democracia liberal; seja como expressão política da luta de classes, na visão marxista.

Já o fascismo não tolera qualquer espécie de contradição de interesses no seio da “nação”, ou da “pátria” – e, diante da mera possibilidade de sua existência, trata de suprimi-la, por qualquer meio, inclusive a supressão dos oponentes, reais ou potenciais. Assim, como decorrência da repulsa a qualquer forma de conflito, o fascismo não aceita também a diferença: por isso, é preciso sempre extirpar do seio da comunidade – unida na idéia fundante de nação, encarnada na figura do chefe – todo aquele que discrepa do modelo mítico da normalidade instituída: imigrantes, negros e, claro, homossexuais, são exemplos clássicos de objetos do ódio fascista.

Ainda como consequência forçosa da incompatibilidade genética do fascismo com o conflito e a diversidade, a eliminação de sua simples eventualidade torna-se tarefa essencial ao seu triunfo, mediante a anulação, quando não a eliminação sumária dos diferentes e contrários. Para o fascista, não há adversário – ou seja, alguém ou algo a derrotar, dentro das regras do jogo político; existem, sim, inimigos – isto é, sujeitos a serem destruídos, não apenas simbolicamente, mas também fisicamente.

No esforço de articular o antagonismo fundamental de seu discurso – construído a propósito da violência e da criminalidade – o fascismo, como é próprio dele, busca cativar a população com soluções fáceis para debelá-las: o endurecimento das leis penais, o armamento generalizado, a autorização e o reforço da violência policial. Não é preciso lembrar que, como sempre ocorre quando se oferece solução simplista para problema altamente complexo, aquelas receitas mostram-se, sempre e necessariamente, desastrosas – pois implicam, sempre e necessariamente, o aumento da violência social sistêmica.

Mas, por isso mesmo, tais medidas são politicamente muito funcionais em regimes de força, uma vez que a retro-alimentação contínua do binômio criminalidade/repressão, serve perfeitamente às suas necessidades de legitimação e reprodução. Ademais, as promessas de reação dura e violenta dirigida a criminosos e desordeiros, seduzem de modo muito particular as pessoas e grupos dos extratos médios e baixos da sociedade – território social que abriga o caldo de cultura do fascismo.

Cabe lembrar, a este respeito, a constatação feita por Umberto Eco, em ensaio clássico que escreveu sobre “O fascismo eterno”: “…O Ur-fascismo provém da frustração individual ou social. O que explica por que uma das características típicas dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas (grifos do autor), desvalorizadas por alguma crise econômica ou humilhação política, assustadas pela pressão dos grupos sociais subalternos (grifos nossos)…” (in “Cinco Escritos Morais”, ed. Record, Rio-São Paulo, 1998, página 46). Muito pertinente, por igual, outra observação do grande pensador peninsular, no sentido de que, para a eficácia das simplificações discursivas dos fenômenos complexos, o fascismo se socorre de uma verdadeira “novilíngua” – “…um léxico pobre e uma sintaxe elementar, com o fim de limitar os instrumentos para um raciocínio complexo e crítico…” (op. cit., página 50).

Ora, à luz desta sucinta revisão teórica sobre as características e mecanismos do discurso político fascista, torna-se fácil perceber, nas falas do candidato da extrema direita brasileira, a mesma cantilena que seduziu, na primeira metade do século passado, boa parte da população européia – atribuindo as dificuldades concretas que afligem nosso povo, de uma maneira geral, aos criminosos, supostamente tratados com benignidade pela lei e pela justiça. E também, de modo muito especial, aos esquerdistas – no caso, os petistas e seus governos, apontados como corruptos. Na mesma linha, tampouco se pode perder de vista que a repercussão favorável deste discurso junto a uma parte significativa do eleitorado se deve, entre outros fatores, às narrativas sobre violência e criminalidade veiculadas diuturnamente, há décadas, pela mídia oligopólica – que desta forma mobiliza as camadas sociais médias e baixas. Sem falar, também, na campanha persecutória seletivamente desencadeada nos últimos anos por parte do sistema de justiça, em conluio com aquele oligopólio midiático, contra Lula, o PT e seus aliados.

Não estranha, assim, que o aspirante ultra-direitista à presidência procure cooptar o eleitorado com propostas simplificadoras para os graves e complexos problemas sociais do país, agravados nos últimos dois anos depois do golpe parlamentar, brandindo compulsivamente seus mantras rasos e grotescos – como o aceno ao armamento da população e à repressão brutal dos inimigos da ordem, verdadeiros ou imaginários. reais, potenciais ou imagingos por ele elitosida contra os inimigos, reais problemas sociais

Diante disso, cumpre alertar que, no ventre de nossa frágil democracia, o fascismo apenas aguarda a hora de emergir, ungido com a legitimidade conferida pelo voto – como se deu nos casos históricos aludidos. Por outro lado, a eleição presidencial de domingo consiste na melhor oportunidade oferecida à cidadania brasileira para fazê-lo abortar, definitivamente.