A luta pela democracia efetiva no Brasil

 Os brasileiros lutam pela liberdade e pela democracia desde tempos imemoriais. Em nosso tempo, esta luta se acentuou desde 1930, e se recoloca, hoje, na necessidade de derrotar a ameaça fascista.

Por José Carlos Ruy*

Democracia

O banqueiro e oligarca baiano Clemente Mariani (UDN), num acesso de sinceridade em sua fúria anticomunista, talvez tenha sido o autor da definição mais clara do caráter da democracia que as classes dominantes aceitam. Ele disse, na Assembleia Constituinte de 1946: "a democracia que queremos implantar no Brasil não é a democracia social ou proletária, mas a democracia formal, burguesa, que tem seu fundamento, sobretudo, na liberdade, e não na igualdade".

É uma definição precisa, feita por este antepassado dos neoliberais de nosso tempo, contra os esforços da bancada comunista que lutava por uma democracia efetiva para garantir amplos direitos sociais e democráticos para o povo e os trabalhadores.

Embora não tenha propriamente uma tradição democrática, o Brasil – o povo brasileiro – tem larga e secular tradição de luta pela liberdade e pela democracia.

No passado colonial, negros e índios lutaram contra a escravização – e também, os brasileiros originários, contra a ocupação estrangeira de suas terras. Luta que deixou alguns marcos importantes na história, como as confederações dos Tamoio (Sudeste, século XVI), dos Jandui (Nordeste, século XVII), o Quilombo de Palmares (Pernambuco/Alagoas, século XVIII) e tantos feito heróicos que ilustram a história do povo brasileiro.

Um passo fundamental foi dado em 1822, quando o Brasil se separou de Portugal. Houve intensa participação do povo na luta contra o domínio português. Como na Bahia, Pernambuco, Piauí, Maranhão, Pará, além de outras províncias, como Rio de Janeiro, São Paulo ou Minas Gerais. Mas quem comandou o processo da independência foram os setores agro-mercantis exportadores, os latifundiários e aqueles que controlavam o tráfico de escravos. Eles impuseram o limite da mudança para não ferir seus interesses –apenas política, para garantir a autonomia do país, mas sem tocar na estrutura social e econômica, mantendo o Brasil na mesma subordinação colonial a potências estrangeiras – no caso, a Inglaterra.

A independência, sob esta liderança conservadora, não significou uma mudança democrática.

Outra grande mudança ocorreu no final do século XIX – o fim do escravismo (1888) e a proclamação da República (1889). Embora importantes estas mudanças também não significaram uma alteração democrática. Elas confirmaram e fortaleceram o domínio da mesma oligarquia que, enraizada no passado colonial, manteve seu poder durante a monarquia e o conservou, na chamada República Velha (1889/1930), o mesmo domínio coronelístico, baseado na fraude eleitoral e na manipulação dos resultados das urnas (com a facilidade do voto não ser secreto).

Foi um período em que o mando oligárquico sobre o povo e os trabalhadores – sobre o país como um todo – se traduziu na inexistência de leis para reconhecer os direitos sociais, políticos e trabalhistas. A ganância patronal se beneficiava da falta de democracia. Sem regulação, a jornada de trabalho se estendia por 10, 12 horas por dia, e mesmo mais. Não havia direito de greve. Nem salário mínimo fixado por lei. Nem Justiça do Trabalho, e os patrões podiam, entre outros privilégios, cobrar multas dos trabalhadores, por alegadas inflações cometidas no trabalho, e diminuir dessa forma, arbitrariamente, os salários de fome que pagavam a eles.

Esta situação calamitosa começou a mudar com a Revolução de1930, que levou Getúlio Vargas à presidência da República. Ele usou o poder do Estado para mudar a economia e destravar o desenvolvimento e adotar leis sociais e trabalhistas. O Brasil conheceu desde então um forte ciclo de desenvolvimento e industrialização, que durou cerca de cinco décadas, até mais ou menos 1980, período em que o Brasil moderno foi construído, deixou o campo, mudou-se para as cidades e se transformou no país urbano, industrial e moderno que é hoje.

A luta pela democracia se acentuou desde então, com altos e baixos, avanços e recuos. Foi nesse contexto que o oligarca baiano Clemente Mariani fez a defesa da democracia apenas formal, baseada na liberdade e não na igualdade.

A luta pela democracia assumiu suas características contemporâneas, que é descrita muitas vezes na mídia conservadora e por escritores e ideólogos das classes dominantes, o choque entre “getulismo” (hoje, “petismo”) e “livre mercado”, argumentação que revela seus traços anti-populares quando vitupera contra aquilo que chama de “populismo”.

Esta luta se traduziu, nestas quase nove décadas (desde 1930) em altos e baixos. Houve períodos de ditadura – desenvolvimentista, sob Vargas, até 1945, e militar e antipopular, enre 1964 e 1985).

Houve governos democráticos (sob Vargas, de 1951 a 1954, Juscelino Kubitschek (1956 a 1961) e João Goulart (1961-1964). Foram períodos democráticos curtos e conflagrados. Vargas foi levado ao suicídio pela ação das forças golpistas antidemocráticas, em 24 de agosto de 1954; Juscelino enfrentou forte oposição antidemocrática, que começou com a tentativa de impedir sua posse, em1956, e seguiu com os levantes de Jacareacanga (1956) e Aragarças (1959). Sob João Goulart a oposição antidemocrática se acentuou e a conspiração contra seu governo democrático levou ao golpe militara de 1964, que deu início à longa ditadura que só terminou em 1985.

O fim da ditadura foi impulsionado pelo grande movimento democrático das Diretas Já, mas estava enraizado na década anterior quando, desde pelo menos 1974, cresceu a resistência popular de massas e democrática contra o regime do arbítrio.

Um dos primeiros atos do governo civil para conduzir o Brasil de volta à democracia foi a convocação da Assembléia Nacional Constituinte que resultou na Constituição Cidadã cuja promulgação completa 30 anos neste 5 de outubro. Embora contestada pelos setores neoliberais e conservadores da classe dominante desde sua promulgação, a Constituição garantiu direitos inéditos para o povo e os trabalhadores, consolidando uma situação democrática historicamente nova no Brasil, rompendo com o formalismo típico das constituições anteriores.

Feição democrática que tornou a Constituição Cidadã desde o início rejeitada por setores da classe dominante. O governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso, eleito sob a égide da Constituição Cidadã, praticamente a desfigurou com nada menos que 28mudanças constitucionais, para adaptá-la ao neoliberalismo. Alterou a definição de empresa estrangeira de modo favorável às multinacionais, impôs a reeleição do presidente da República para favorecer seu projeto de poder, privatizou empresas estatais, entre outras medidas.

Em 2003, com a posse de Luiz Inácio Lula da Silva na presidência da República, o Brasil passou a viver seu mais largo período – mais de uma década – de democratização efetiva, não apenas formal mas principalmente social. Houve distribuição de renda e o atendimento a direitos básicos do povo, garantidos pela Constituição – moradia, saúde, educação, emprego, entre outros. Avanço democrático que, ao romper com a democracia meramente formal admitida pelos setores reacionários da classe dominante, criou o caldo de cultura onde vicejou o ódio político que levou o Brasil à divisão e ao rompimento com a democracia, no golpe midiático-judicial-parlamentar de 2016. E que recoloca os brasileiros na mesma trincheira da luta pela democracia que marca sua história como povo.