Haddad e Manuela são a resistência democrática contra a barbárie

Durante a tarde do último domingo, quando a Avenida Paulista estava tomada pelo festival Lula Livre e pela caminhada com Haddad e Manuela, o candidato da extrema-direita divulgava uma sombria fala desde o leito do hospital em que se encontra.

Por Alexandre Ganan de Brites Figueiredo*

Haddad e Manu resistência - ILustração: Tainan Rocha

Bolsonaro procurou antecipar a disputa de um segundo turno dele contra Haddad, demarcando seu campo para desidratar ainda mais a candidatura de Alckmin nas três semanas que restam até as eleições. Os tucanos imaginaram que herdariam o país após o golpe de 2016 e agora são engolidos pela extrema-direita. Até aí, são as disputas internas do campo conservador.

A questão está na explícita ameaça à democracia, sem qualquer máscara. Bolsonaro ataca desde já a legitimidade das eleições, fala que as urnas serão fraudadas e que o presidente Lula estaria preso não por conta da flagrante injustiça da sentença de Moro, mas sim de uma estratégia bizarra dele próprio, Lula: uma sandice evidentemente insustentável. Porém, matéria fértil para seus apoiadores. Já se disse que a Segunda Guerra Mundial foi uma luta entre o irracionalismo dos fascistas e os herdeiros do Iluminismo. O fascismo se alimenta da irracionalidade e cresce graças a ela. Não é diferente hoje.

Sabendo disso, a candidatura da extrema-direita procura deixar a cama feita para atacar, de novo, a democracia. Alguns dias antes, o candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro, o general da reserva Hamilton Mourão, falou contra a Constituição Federal. Ele disse a uma plateia de empresários em Curitiba que o Brasil precisa de uma constituição enxuta e elaborada por alguns escolhidos do presidente, sem necessidade de voto popular ou de eleição de constituintes.

Não é a primeira das falas obtusas de Mourão, mas dita num contexto em que ele fazia movimentos para trazer para si o protagonismo após a hospitalização do titular da chapa, ganha mais relevância e evidencia que o Brasil tem diante de si um discurso político autoritário, antidemocrático e difusor das fantasias mais esdrúxulas.

Não obstante, isso não impede o movimento dos “liberais” do país a caminho do apoio a isso. “Herdeiros do Iluminismo” estão dispostos a sacrificar a democracia para impedir a quinta vitória do projeto popular. Nada de novo: fizeram isso em 2016. Mas agora a alternativa de direita deixa cair suas máscaras, ataca abertamente a institucionalidade bem ou mal construída após a última ditadura e não se constrange em externar os preconceitos mais atávicos da escravocracia difundida desde a elite brasileira.

Foi um pacto liberal-conservador que sustentou a escravidão e, depois dela, uma república sem voto popular, com o poder concentrado em alguns oligarcas. Esse é o tamanho do retrocesso pregado por esse polo que, até agora, tem conseguido aglutinar a direita. Aliás, um acordo desse tipo foi a tônica em quase toda a América Latina durante a segunda metade do século XIX, no final do processo de consolidação dos estados nacionais.

Lá atrás, esse pacto foi viabilizado por uma fórmula que agradava a ambos os projetos: restrição dos direitos políticos e ampliação dos direitos econômicos, ou seja, garantia de ação livre para o capital e portas fechadas para a participação popular no poder. Nossos Estados foram, assim, forjados no interesse dos mais ricos e com um abismo separando o povo de suas instituições.

É a reedição desse acordo que temos diante de nós, no horizonte. As forças que se aglutinam ou que já flertam com a candidatura de Bolsonaro têm raízes históricas que descem ao colonialismo, à escravidão, às castas, a um modelo de Estado excludente. Desde as independências, há dois séculos, são o obstáculo à nossa soberania e à extensão da cidadania para todo o povo. Por isso, por suas raízes e por seu programa histórico, esse acordo entre os liberais e mercadistas com uma extrema direita antidemocrática passa, necessariamente, pelo ataque à Constituição de 1988 e a tudo o que ela representa.

Também na semana passada, o ministro Dias Toffoli tomou posse como presidente do Supremo Tribunal Federal. Em seu discurso, ele defendeu enfaticamente a ordem constitucional. Apresentou a Constituição de 1988 como o ápice de um processo de extensão dos direitos individuais, coletivos, sociais, econômicos, culturais e das minorias. Recomendou prudência aos juízes e lembrou que o Judiciário só existe em democracia quando atua de forma harmônica com os outros dois poderes. Fez ainda uma defesa do direito de voto e lembrou que durante a maior parte da história brasileira predominou a exclusão.

Nesse momento em que se configura uma candidatura abertamente contrária ao que a Constituição de 1988 representa, a fala do novo presidente do STF vem em boa hora. Até porque sabemos que vivemos um momento delicado para o Judiciário, no qual garantias fundamentais são desrespeitadas, tratados internacionais são descumpridos e juízes falam fora dos autos. Até o direito aos habeas corpus e as prerrogativas da advocacia são colocados em questão pelas autoridades que tem o dever constitucional de defendê-las.

Uma constituição não é apenas uma norma maior. Ela é um projeto de sociedade e um compromisso com o futuro. A de 1988 foi elaborada tendo em vista o histórico abismo social, a falta de direitos e de meios para garantir esses direitos, bem como a necessidade de superar o arbítrio e consolidar um verdadeiro Estado Democrático de Direito. Claro, a mera existência dela não garante nem um e nem outro. Mas é a definição dessa meta, desse projeto coletivo, que deve orientar o Brasil e a atuação das instituições. Por isso, sempre houve desconforto da elite econômica do país com a Constituição. O governo de Temer, inclusive, a atacou diretamente com a PEC dos gastos.

Hoje, momento em que esse ataque está cada vez mais descarado, despindo-se da fantasia de legalidade que o golpe de 2016 tentou vestir, o campo popular e democrático deve fazer da sua defesa o ponto inicial do debate. Quando Fernando Haddad disse, ao final de sua “entrevista” ao Jornal Nacional, que era candidato para trazer o Brasil de volta ao período de normalidade democrática, era a essa normalidade democrática que ele se referia: ampliação dos direitos para o povo e superação das desigualdades. Esse é o programa da candidatura de Haddad e Manuela e é o programa da nossa Constituição. Não é à toa que os inimigos de uma se apresentam cada vez mais como inimigos da outra.

O campo popular e comprometido com a democracia está hoje aglutinado em torno do legado de sua última grande vitória: o ciclo de mudanças aberto com a eleição do presidente Lula. Fernando Haddad e Manuela D’Avila são tanto os indicados por ele para garantir um novo ciclo de direitos e democracia, como são, desde já, a própria resistência democrática, contra a barbárie. A disputa está dada entre os herdeiros de 1988 e o obscurantismo. É hora de tomar posição!