Juliana Diniz: Mulheres ingovernáveis

“Tivemos nosso corpo tomado pela ideia do pecado. Não foi fácil. Fomos queimadas em praça pública. Ardeu, arde até hoje, porque ainda nos chamam de bruxas, imaginem! Fomos relegadas pela lei dos homens e de deus ao papel subalterno de procriadoras. O casamento nos retirava a capacidade civil. Os maridos decidiam pelo futuro dos nossos úteros. Foi sofrido. Durou muito tempo. Tempo demais. Cansamos de apanhar”.

Por Juliana Diniz*

Mulheres em luta

Temos em 2018 uma eleição marcada por ódios coletivos, candidatos extremos e milagres públicos. O principal desses milagres talvez seja a descoberta da mulher. Tomados pelo espanto, engravatados atentos ao destino da república constataram que elas votam e (pasmem!) são a maioria do eleitorado. Que talvez entendam alguma coisa de política e possam debater. Que passaram a ser presença obrigatória nas chapas. Manuela, Kátia ou Sônia, à escolha: não há santinho de respeito que deixe de ostentar rosto de mulher. O destino inevitável, para desespero dos mais inflamados, é o de que a rampa do planalto, se os militares permitirem, haverá de ser percorrida pelo preferido das moças.

Então nos tornamos um problema eleitoral. Analistas dirão, inspirados pela medicina do século XIX ou pela biologia, que nossa natureza é dada ao rancor, nossos ódios são inexplicavelmente persistentes. E tudo porque, mesmo no calor dos ataques e da violência, nossa rejeição segue invariável. Orquestramos uma articulação, nos tornamos, em minutos, coro nacional, potente e ruidoso. Ressentidas com aqueles que nos ultrajam, violentam e excluem, nós respondemos, com ênfase: ele não.

Mas é preciso que se explique o motivo da rejeição, para que não acusem o sexo frágil de histeria. Nosso ressentimento se deve menos às paixões que ao convencimento eficaz que nos ofereceram séculos de penitência. Tivemos nosso corpo tomado pela ideia do pecado. Não foi fácil. Fomos queimadas em praça pública. Ardeu, arde até hoje, porque ainda nos chamam de bruxas, imaginem! Fomos relegadas pela lei dos homens e de deus ao papel subalterno de procriadoras. O casamento nos retirava a capacidade civil. Os maridos decidiam pelo futuro dos nossos úteros. Foi sofrido. Durou muito tempo. Tempo demais. Cansamos de apanhar.

Então, insatisfeitos com a baderna alegre das fêmeas, alguns homens acharam que era possível condená-las novamente ao silêncio. Furtaram, com a covardia e a falta de classe dos larápios incultos, o fórum onde milhões de mulheres debatiam para decidir o futuro que lhes cabe. O grupo das mulheres unidas contra tornou-se, pela força do porrete, o grupo dos homens unidos a favor. Não adiantou muita coisa. Em tempos de pluralidade democrática, os insatisfeitos descobriram que o porrete tem pouco efeito sobre o girar de saias.

O que temos a dizer é que não lamentamos. A democracia tem dessas piadas. É o regime da razão, como do acaso. Quis o destino de 2018 que fôssemos muitas, barulhentas e organizadas. Quis o destino que o bruto fosse verborrágico, raivoso e muito claro nos seus propósitos de oprimir. E pior! Quis a história que, diante de um bruto, fôssemos não histéricas e perigosas, mas absolutamente ingovernáveis.

*Juliana Diniz é Doutora em Direito e professora da Universidade Federal do Ceará.

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