Programa de governo da direita: a trajetória de uma farsa

O golpe de 2016 foi, mais do que uma fraude política e jurídica, uma ruptura com o ciclo de governos democráticos e progressistas para restaurar a ordem neoliberal. O impeachment fraudulento da presidenta Dilma Rousseff e a prisão do ex-presidente Lula são os atos principais dessa farsa.

Por Osvaldo Bertolino*

Fernando Henrique Cardoso

Quando o vice-presidente de Fernando Collor de Mello, Itamar Franco, assumiu a Presidência, após o impeachment, um estridente coro neoliberal ecoou exigindo a continuidade da aplicação do programa de governo neoliberal eleito em 1989. Ele nunca foi o paspalhão que a mídia tentava pintar e alertou sobre os riscos da política macroeconômica que privilegiava a entrada de dólares no país para especular no mercado dos títulos públicos. Não serviria para um hipotético banquete no qual todos se fartariam, dizia ele.

Mas Itamar Franco era uma voz isolada, ainda mais depois que defendeu o fortalecimento do mercado interno por meio principalmente da geração de empregos. Mesmo no governo o jogo era pesado. No início de 1993, o então ministro da Fazenda, Eliseu Rezende, telefonou para Itamar Franco e apresentou uma lista de empresas estatais que ele considerava passíveis de serem privatizadas com o objetivo de arrecadar US$ 30 bilhões para liquidar a parcela mais cara da dívida pública, que correspondia a US$ 37 bilhões.

Por precaução, usaram uma linguagem cifrada (Tancredo Neves dizia que no governo devia-se falar ao telefone partindo do princípio de que estava grampeado). Cada US$ 1 bilhão da dívida interna equivalia a um pé de café. ''Vamos arrecadar 6 pés de café com a privatização da Vale'', disse Rezende. O presidente respondeu: ''Cuidado que o espírito do Severo Gomes vai lhe puxar os pés esta noite''. Era uma referência ao falecido senador por São Paulo e um dos porta-vozes do nacionalismo brasileiro.

Dias terríveis

Por expor opinião como essa, Itamar Franco sofreu um golpe branco — sob pressão, seu governo acabou assumindo o programa de governo do ex-presidente Collor, o que resultou no Plano Real e na nefasta ''era neoliberal'' comandada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC). Nessa travessia, a mídia só fez esconder informação. A operação começou quando FHC foi nomeado para o cargo de ministro da Fazenda. Sua posse foi saudada por entidades patronais com expressões como “bela tacada de Itamar Franco”, “craque nota dez” e “arauto da modernidade”. Até o secretário de Estado norte-americano, Warrem Cristopher, ligou para parabenizar o novo ministro da Fazenda.

FHC chegou dizendo que “precisamos botar a casa em ordem”. “Isso não significa intervenção no mercado”, ressaltou. Estava dada a senha. Ele afirmou que não reduziria os juros, que não alteraria o Programa Nacional de Desestatização herdado de Collor e que lutaria pela “estabilidade”. “Nossa prioridade é o combate à inflação, sem matar o povo de fome”, declarou. Ele tomou posse prometendo “ordenar as finanças públicas e controlar o endividamento de Estados e municípios”, palavras também herdadas de Collor. Dias terríveis aguardavam a nação. A “arrumação da casa” começou com o chamado “Plano Verdade”, que consistia basicamente em arrochar investimentos públicos, o “ajuste fiscal”.

Em 1994, FHC seria o principal personagem do país. Já em janeiro, ele ocupou a televisão para pressionar o Congresso Nacional a aprovar seu programa econômico e iniciar a sua indisfarçável campanha à Presidência da República. Com suas manobras, conseguiu aprovar o Fundo Social de Emergência (na prática, uma desvinculação parcial de recursos da área social para criar uma reserva monetária que serviria de garantia à “estabilização”). Era o embrião do superávit primário. Depois o nome do mecanismo passou a ser Fundo de Estabilização Fiscal e hoje se chama Desvinculação das Receitas da União (DRU), a reformulação do Orçamento e a criação da Unidade Real de Valor (URV).

Caso Bisol

FHC começava a dar forma ao seu programa de governo. O projeto neoliberal começava a aparecer com sujeito, predicado e objeto direto. O trator neoliberal não poupava ninguém. Nem o presidente Itamar Franco, que ousou opinar sobre algumas medidas anunciadas pela equipe econômica. A mídia o atacou violentamente quando ele disse que o Congresso Nacional deveria regulamentar o artigo da Constituição que determina o limite de 12% ao ano para a taxa de juros — antevendo o estrago que a turma de FHC promoveria.

Logo se veria que sua preocupação tinha razão de ser — no primeiro dia útil do Plano Real, a taxa de juros, puxada pelo Banco Central (BC), disparou, chegando aos 12%. Um ano depois, já estava em 60%. O próximo passo seria a investida contra o Estado — abrangendo a União, os Estados e municípios. O estrago que a confraria neoliberal promoveria no país estava apenas começando. O ataque da mídia a tudo que parecesse progressista e a intensa propaganda do Plano Real elevaram FHC à condição de candidato imbatível.

Os ataques a Lula, como em 1989, eram desonestos. O caso mais escabroso ocorreu com seu vice, José Paulo Bisol, acusado de manipular verbas do orçamento para beneficiar suas terras. A ''denúncia'', lançada pelo jornal Zero Hora de Porto Alegre, não foi provada e a publicação teve de pagar indenização de 1,191 milhão de reais ao ex-candidato a vice de Lula. Mas o tropeço de Rubens Ricupero, que em uma conversa informal — acidentalmente divulgada —afirmou que não tinha escrúpulos, não representou qualquer arranhão à campanha da direita. A mídia viu enorme gravidade no primeiro caso e nenhuma no segundo. Resultado: FHC foi eleito no primeiro turno, em 1994.

Sistema rapinesco

Em 1998, no auge da privataria, o Brasil também passaria por um processo importante: a reeleição de FHC. Numa manobra escandalosa, ele conseguiu alterar a Constituição e assim ganhou mais 4 anos no Palácio do Planalto. Mas logo o Brasil, atado à “globalização” neoliberal que sustentava a ciranda financeira internacional, seria atingido de frente pelo furacão que começou a girar na Ásia em 1997. Aquela região era apresentada como um paraíso onde tigres poderosos cresciam e afiavam as garras. O furacão começou a girar na Tailândia, com o mercado apostando contra o baht — a moeda local. Finalmente, ele chegou à Rússia e ao Brasil.

Para não se afundar, o Brasil agarrou-se à tábua de salvação lançada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), fechando o primeiro acordo em novembro de 1998 (o compromisso seria renovado sucessivamente e valeria até o fim do último contrato assinado por FHC, já em 2005, com Lula na Presidência da República). O modelo econômico hegemônico, delegado a FHC no Brasil, mostrava seus resultados.

O Estado havia sido transformado em mero instrumento do sistema rapinesco do rentismo, no qual poucas leis fazem tanto sentido quanto a lei do mais forte. O aparelho do governo regia o assalto ao erário público e decidia quanto ficaria nas mãos de um ou outro. O restante da sociedade não tinha alternativa senão pagar o que lhe era exigido e resignar-se com o que recebia. Eventuais rebeldias contra essa ordem eram tratadas como caso de polícia.