A esquerda além do mar e um relato da festa do Avante

A Festa do Avante!, realizada pelo Partido Comunista Portugûês, entre os dias 7 e 9 de setembro,  foi uma fonte revigorante para compreender a unidade internacional das lutas da esquerda e a possibilidade de catalisá-las por meio da cultura.

Por Tiago Alves, especial para o Portal Vermelho

Festa do Avante 2018 - Foto: Nivaldo Santana

Em um dos lados do Atlântico, o mês de setembro se espraia nas linhas decisivas de acontecimentos políticos que tingirão a história do continente pelas próximas décadas. O clímax político do golpe parlamentar, jurídico e midiático que depôs o governo eleito do Brasil, impôs a Lula uma prisão política e libertou a brutalidade fascista arrefecida desde o ocaso da última ditadura. A convulsão liberal da Argentina, abafada mundialmente ao custo do esganamento dos holofotes da mídia capitalista sobre a Venezuela e a maximização tendenciosa das suas mazelas. O embate desonesto das narrativas sobre os processos de transição na Nicarágua, em Cuba, o início de um novo período político no México, a desafiar os muros estadunidenses de Trump, o enjaulador de crianças.

Do outro lado, ao norte, a Europa também atravessa inquieta o ano de 2018, conhecendo os sintomas mais desenvolvidos da crise econômica e política que, no último período, arrebentou em chagas com a consolidação da força eleitoral da extrema direita – e mesmo nazista – em grandes nações como a Alemanha e a França, o massacre odioso dos refugiados nas fronteiras, a retirada do Reino Unido da União Europeia com o Brexit, os efeitos das políticas de austeridade cobrando a conta sobre trabalhadores e a população mais pobre em diversos países. Em Portugal, destino curiosamente escolhido recentemente pela hipocrisia dos brasileiros mais ricos que balbuciam a defesa porca do liberalismo e do estado mínimo, a situação atual é de fortalecimento da esquerda e disputa pelos avanços sociais em um governo encabeçado pelo primeiro ministro socialista António Costa e acompanhado de forma crítica pelo do Partido Comunista Português (PCP).

Foi sobre os traços desse momento histórico que chegamos à Festa do Avante!, que ocorreu entre os dias 7 e 9 de setembro em Atalaia-Amora-Seixal, a cerca de 20 quilômetros de Lisboa. O Avante! Deve ser proporcionalmente o maior encontro cultural da esquerda em toda a Europa e, provavelmente, em todo o mundo. Já em sua quadragésima segunda edição, o evento organizado pelo PCP reúne dezenas de milhares de comunistas e amigos de diversos cantos, em uma locação afastada dos centros urbanos, para montar acampamento durante três dias e confraternizar as suas lutas em uma espécie de dínamo de festa e política. A programação do Avante! inclui uma intensidade de shows musicais em nada menos que sete diferentes palcos diários, atos oficiais do partido e dos movimentos participantes, um teatro, um cinema, espaço ciência, exposição de artes plásticas, debates diários em incontáveis rodas simultâneas de conversa, atividades lúdicas para crianças, práticas coletivas voltadas à saúde e a qualidade de vida, torneios esportivos – incluindo modalidades para pessoas com deficiência – oficinas de arte, gastronomia, tudo engendrado de forma assustadora e encantadora pelo trabalho de mais de mil voluntários. O Avante! é a realização militante de um sonho que não apenas reteve a sua chama como ampliou vistosamente os seus contornos ao longo dos anos.

A magnitude da festa se afirmou a nós ainda antes da largada, nos dias anteriores. Chegamos com a missão de observar e receber solidariamente, dos camaradas portugueses, um pouco do conhecimento empregado no evento, aprender com a sua forma de gestão e mobilização, vislumbrar e propor o intercâmbio com outros eventos e festividades da esquerda no Brasil. "Bem-vindos camaradas, esta é uma terra sem amos", foi a frase que apeteceu nosso desembarque em Atalaia-Amora-Seixal durante a montagem do festival. Um espaço portentoso, erguido à beira do Tejo, grandes galpões com estruturas metálicas, compensado, tratores e uma estrutura complexa de administração dos trabalhos. A todos os cantos, sobressaía-se a bandeira vermelha do partido, tremeluzente, destacando-se a maior sobre uma torre de telecomunicações, a observar o formigueiro de trabalhos e alegrias imiscuídos para a chegada da festa. Uma cidade montada por apaixonados que constroem, serram, pintam, mas acima de tudo compartilham o mesmo sentimento. Jovens, adultos e crianças marcados pelo forte sol do verão europeu.

Os voluntários são, em grande parte, filiados ou simpatizantes do Partido Comunista Português de várias gerações. Avôs e avós que viveram a Revolução dos Cravos em abril de 1974, pais e mães que cresceram rente às conquistas daquele movimento na restauração democrática portuguesa, netos e netas da juventude que hoje buscam resgatar a seiva tenra e inspiradora daqueles dias em meio às contendas de agora e aos novos desafios da esquerda do século XXI. Em um restaurante coletivo, destinado aos voluntários, fomos perguntados com gentileza e apreensão acerca da situação no Brasil. Os sentimentos de solidariedade à perseguição de Lula e a preocupação com os avanços da extrema-direita brasileira estão, certamente, internacionalizados. A área dos acampamentos e o espaço internacional foram em pouco tempo tomados por uma série de representações: Angola, China, Cuba, Venezuela, Vietnã, Cabo Verde, Galícia, Alemanha, Itália. Mochilas, sacos de dormir, histórias de viagem para contar e ouvir em volta do fogo das churrasqueiras, sempre cheias de pregos, bifanas e chouriços. Os belos painéis que brotavam ao largo do campo não eram obra do renome de artistas ou do design de patrocinadores, mas sim da marcação solidária entre pessoas comuns que traçavam as primeiras linhas e, em seguida, convidavam outras para continuar o desenho, em uma troca tradicional da festa, com fascinante resultado visual. “Toma nas tuas mãos o destino da tua vida”, aconselhava um. “Pelos caminhos do mundo, a caminho de abril”, anunciava outro. “Terra, Luta, Arte, Futuro”. Por todas as raias do espaço, a rádio poste temperava o clima, com canções revolucionárias de todos os cantos do mundo e destaque ao Brasil. As barracas de alimentos e artesanatos ofereciam uma diversidade de itens, organizadas pelas direções partidárias de muitas regiões portuguesas à base da economia solidária e retroalimentando as bases do PCP. A barraca brasileira também se projetava, sob o comando do camarada Beto, sendo uma das mais animadas com caipirinha, feijoada e materiais do PCdoB.

O grande número de estrangeiros presentes ao festival é também marca da preferência dos europeus de muitos cantos pelo turismo da temporada de sol em Portugal. Lisboa, especialmente, corre o belo risco de ser talvez, neste momento, a capital mais cosmopolita do continente. Dessa forma, as atrações artísticas do Avante! atendem a uma vasta miríade de gostos e públicos, fazendo também parte do calendário de grandes eventos do circuito comercial, embora diametralmente contrapostas no que tange aos objetivos e resultados do evento, como dizem os portugueses a “Festa é um ponto de partida e não de chegada”. Neste ano apresentaram-se desde os veteranos do rock português Xutos e Pontapés – completando 40 anos de carreira – ao trio de música negra The Black Mamba. Da mistura palestina do 47Soul ao fado de Aldina Duarte, atual destaque do gênero na cena de Portugal. Em diversos momentos, uma recorrência musical é frequentemente a senha para que, em um instante, o turbilhão da juventude presente se entregue à celebração. É a toada da Carvalhesa, uma canção tradicional do repertório popular e comunista português que, imediatamente ao ser provocada, levanta o público em meio a sinalizadores vermelhos e bandeiras hasteadas. Selando a primeira noite da festa, o público foi agraciado com um majestoso concerto sinfônico em homenagem ao bicentenário de Karl Marx, finalizado com a nona sinfonia de Beethoven.

Ao abrir e fechar do evento, o secretário-geral do PCP Jerónimo de Souza trouxe um discurso forte e benfazejo às variadas delegações, marcando o caráter indistintamente político daquilo que acontecia. Ao final de sua fala, sempre tocada a Internacional e o hino do Partido. Os debates ao longo da programação traçaram perspectivas possíveis para desatar os nós do capitalismo em diversas pontas da vida cotidiana europeia e mundial. Vividamente concentrados pelos muitos auditórios e também espaços improvisados, festejantes e convidados trocaram suas impressões em questões como os direitos dos trabalhadores e trabalhadoras, a autodeterminação dos povos, a questão migratória, a luta contra as privatizações, o investimento público na área da cultura. Representando o Comitê Central do Partido Comunista do Brasil, Nivaldo Santana foi um dos nomes da mesa "Um Mundo em Mudança – Desenvolvimentos e Tendências de Fundo da Situação Internacional”. Sob a atenção estreita do público, ele repassou os acontecimentos mais recentes do conturbado processo político brasileiro, ressaltando a participação dos comunistas no resgate da democracia e dos avanços sociais no país. Apresentou as experiências dos governos do partido no Brasil, em especial o de Flávio Dino no estado do Maranhão, com suas conquistas práticas e a plantação de novas esperanças naquele que, há pouco, era um dos mais desolados sítios da nossa desgastada República.

Em outro momento, levando sua fala ao Palco Solidariedade, Nivaldo denunciou a movimentação política autoritária que barrou a candidatura de Lula e que busca impor, de forma ilegítima, a pauta cruel do neoliberalismo. “A nossa resistência tem sido grande e só vai aumentar. Nós realizamos uma poderosa greve geral no último dia 28 de abril, que conseguiu a grande vitória de impedir a Reforma da Previdência. Nossa convicção é que as forças reacionárias podem acumular alguma vitória, mas tarde ou cedo o povo brasileiro vai se levantar e dar um basta aos fascistas e à extrema-direita, abrindo uma nova perspectiva ao nosso país”, declarou o representante do PCdoB, sob aplausos e palavras de força. O Partido dos Trabalhadores (PT) também esteve presente à festa e as duas siglas armaram seus estandes fraternalmente, durante todos os dias de encontro, repassando materiais e informes acerca do atual ciclo das lutas populares brasileiras.

A Festa do Avante! foi, por três dias, uma fonte revigorante para compreender a unidade internacional das lutas da esquerda e a possibilidade de catalisá-las por meio da cultura. O resultado da solidariedade e dos laços criados na construção de todo o festival são motivo de orgulho: o Avante! reúne um contingente enorme de pessoas conseguindo garantir uma transcorrência absolutamente pacífica, com nenhum episódio de desentendimento ou violência, respeito admirável ao meio ambiente e ao recolhimento de todo o lixo gerado, harmonia coletiva para o convívio e a democracia em um espaço de completa proibição das áreas VIPs ou qualquer forma de segregação. A festa é um aprendizado valioso para a construção similar de experiências na América Latina, apostando na construção coletiva da nossa militância e na sua criatividade para vislumbrar projetos e caminhos futuros. O Avante! deixou para o Brasil o carinho da sua acolhida e a certeza de que a bandeira do PCdoB e dos nossos partidos irmãos por lá sempre terá guarida e espaço ao alto. Fica inclusive aqui, nominalmente, a nossa mais calorosa reverência, agradecimento e saudade em direção à pessoa da camarada Rita, da Comissão de Relações Internacionais, por ter permitido essa nossa transformadora incursão. Pelas ondas que nos ligam de uma a outra praia do Atlântico, seguiremos irmanados e irmanadas, levando a memória do Avante!, sob o farol da edificação do socialismo e da vitória sobre toda e qualquer opressão em torno do mundo. Que venha a edição de 2019. Saudações comunistas!