Museu Nacional: como nascem e se reproduzem as desinformações

A tragédia que, na noite do último domingo (2), destruiu o prédio principal e a maior parte do acervo do Museu Nacional no Rio de Janeiro também foi marcada pela desinformação – algo que tem se tornado corrente em episódios de grande repercussão no país.

Por Bia Barbosa*

Incêndio Museu Nacional - Ricardo Moraes/Reuters

Mal os bombeiros tinham conseguido conter as chamas que tomaram conta do Palácio Imperial da Quinta da Boa Vista, toda sorte de números, comparativos, análises e “fatos” tomaram conta do debate público, na internet e na imprensa tradicional. Candidatos à Presidência da República foram chamados a se pronunciar sobre o ocorrido e apresentar propostas para a área da cultura e da pesquisa, sempre tão esquecidas nos temas de campanha.

A polarização que caracteriza o atual momento brasileiro também marcou as declarações de políticos, autoridades e dos cidadãos, que ocuparam as redes sociais com o tema nos últimos dias. De um lado, a crítica às políticas de austeridade que atingiram o Museu nos últimos governos, com destaque para a Emenda Constitucional 95, projeto de Michel Temer, que congelou os gastos também na área da educação pelos próximos 20 anos, deixando universidades como a UFRJ, que gere o Museu Nacional (MN), ainda mais na penúria. De outro, argumentos sobre a suposta incapacidade de uma instituição pública, que estaria inchada de funcionários despreparados e encostados, gerir um museu desta importância.

Em meio ao jogo de empurra sobre os responsáveis pelo incêndio, uma denúncia da maior gravidade ganhou as páginas do jornal O Globo, o maior do Rio de Janeiro e um dos maiores do país. No dia seguinte ao incêndio, em 3 de setembro, o veículo cravou: “Museu Nacional teve proposta de US$ 80 milhões do Banco Mundial. Reforma foi rejeitada pela UFRJ há cerca de 20 anos, pois implicava em transformar a instituição em fundação de direito privado”. A matéria, baseada num post de Facebook do sociólogo Simon Schwartzman, ex-presidente do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets), informava que, havia duas décadas, o ex-prefeito do Rio e empresário do setor de celulose, Israel Klabin, tinha obtido recursos no exterior para reformar a instituição, mas a operação não tinha sido possível porque a UFRJ não abria mão de seu controle.

Segundo O Globo, o Banco Mundial “impunha como condição à liberação dos recursos que o museu tivesse gestão independente. A ideia era transformá-lo em organização social, entidade privada sem fins lucrativos que recebe subvenção do estado para prestar serviços de interesse público”. O jornal não conseguiu falar com o Museu Nacional e com a UFRJ até a publicação da matéria (por que será que estavam tão ocupados naquele momento?), tampouco com Israel Klabin. Mesmo assim, publicou o texto.

Às 8h36 da manhã do dia seguinte, na terça, repercutindo a matéria de O Globo, o MBL (Movimento Brasil Livre) escreveu em sua página no Facebook que “a ideologia mata nossa cultura”. O post já teve mais de 14 mil curtidas e 15 mil compartilhamentos. Outros dois, tratando do mesmo tema, alcançaram juntos 8 mil compartilhamentos. Kim Kataguiri, candidato do MBL à Câmara dos Deputados, também publicou um vídeo em que comenta a matéria do jornal. Já foi visto por mais de 77 mil pessoas.

Naquela tarde, a Folha de S.Paulo também publicaria a seguinte manchete: “Há 20 anos, universidade recusou verba para reforma de museu incendiado. Banco Mundial previu repassar US$ 80 mi para instituição nos anos 1990”. O jornal se baseou em entrevista do Brazil Journal com Israel Klabin. Também não conseguiu falar com o Museu Nacional e a UFRJ antes da publicação, mas afirmou: “o dinheiro nunca saiu do papel por um veto da UFRJ”. Contraditoriamente ao próprio título da reportagem, a matéria da Folha diz, bem adiante, que o Banco Mundial declarou “não ser possível determinar quem foi o responsável pela não formalização da proposta” e que “o fim das conversas não estaria ligado a alguma condição específica exigida pelo Banco Mundial”. Como explicar a manchete sobre “recusa da verba pela UFRJ” então, se uma das partes negou a declaração do empresário dada a outro jornal e a outra parte envolvida (o Museu) não pode ser ouvida? O estrago estava feito.

Horas depois, o professor titular do Programa de Pós-Gradução em Antropologia Social do Museu Nacional, Antonio Carlos de Souza Lima, fazia um apelo para que todos compartilhassem nas redes sociais a informação correta sobre o ocorrido, que o jornalismo de O Globo não conseguiu apurar e que a Folha distorceu. Segundo ele, “nunca houve tal interdição, assim como nunca houve a intenção de transformar o Museu Nacional numa OS [Organização Social] ou fundação independente. A verdade é que após meses de trabalho conjunto de uma comissão do Museu Nacional com técnicos do Banco Mundial durante a gestão do Prof. Luiz Fernando Dias Duarte no MN, o banco simplesmente descontinuou as negociações. Os documentos que comprovam tudo isso perderam-se com o fogo, as mentiras viram verbete da wikipedia no mesmo dia em que saem num periódico de repercussão nacional, em vozes que nunca tiveram qualquer relação com nosso Museu, nem com a universidade, nem fizeram parte de qualquer negociação e muito menos se preocuparam com o patrimônio nacional".

Nesta quarta (05/09), a BBC News Brasil publicou matéria destacando a nota do Banco Mundial, confirmando a declaração do professor do Museu e negando o estabelecimento de condições para a confirmação do financiamento. Mas já era tarde, e a desinformação provocada por O Globo e reforçada pela Folha continua circulando pela Internet, reforçada não apenas pelo MBL, mas por outros jornalistas, como o apresentador Milton Neves, da Rádio Bandeirantes AM e BandNews FM, que escreveu indignado em seu Tweeter sobre o “fato”.

O Projeto Comprova, que reúne diversos veículos da imprensa – incluindo a Folha – num esforço de checagem cruzada de informações consideradas relevantes para o debate público, não corrigiu a informação. Até o fechamento deste artigo, agência de checagens Aos Fatos também não, tendo publicado sobre o Museu Nacional um texto que fala sobre a falta de verbas que atinge a instituição desde a década de 1950 e outro sobre sites que teriam publicado informações falsas sobre investimentos do BNDES no órgão. A Lupa, outra agência de checagem, também não tratou do erro de O Globo. Suas duas checagens sobre o Museu Nacional foram sobre um comparativo que circulava nas redes sociais sobre o orçamento do MN e valores de projetos aprovados pela Lei Rouanet e, outra, sobre projetos de financiamento do próprio Museu também pela Lei Rouanet. Obviamente, a iniciativa “Fato ou Fake”, das Organizações Globo, não falou desse “fake” da sua empresa.

A Reitoria da UFRJ lançou nota pública preocupada “com a difusão de informações imprecisas e incorretas sobre a questão orçamentária da Universidade, que estão retirando do foco central o Museu Nacional, a perda de acervo e o significado disso para a nação brasileira”. Não há menção específica ao episódio de financiamento do Banco Mundial. Segundo o texto, “em razão dos cortes, a UFRJ prevê que fechará este ano com déficit de R$ 160 milhões”.

O jogo político da desinformação

Em meio ao contexto eleitoral, entretanto, o incêndio no Museu Nacional não ficou apenas no debate “Estado mínimo x ampliação de recursos para a educação, a ciência e a cultura”. A atual gestão da UFRJ, que tomou posse em 2015, também entrou na berlinda. E, em sabatina na GloboNews, na terça-feira, a senadora Ana Amélia (Progressistas/RS), candidata a vice-Presidente na chapa de Geraldo Alckmin, declarou que o PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) era culpado pelo incêndio.

Ana Amélia levou, para a TV, sem nenhum questionamento de seus entrevistadores, a campanha que o MBL – do qual é aliada, já tendo sido considerada por Kataguiri um de seus “quadros” – começara pela manhã na Internet. Com o vídeo “Dedos do PSOL no Museu em Chamas”, visto por 54 mil pessoas, o MBL deu início a uma série de postagens afirmando que a Reitoria da UFRJ é controlada pelo partido. Um deles, com a chamada “Cadê o dinheiro, PSOL?”, teve cerca de 5 mil compartilhamentos. Outros, somados, dobraram este número nos últimos dias. O último vídeo, publicado na noite desta quarta, diz que “o reitor da UFRJ, Roberto Leher, filiado ao PSOL (…) apoia o movimento terrorista MST”. Foi assistido por 21 mil pessoas em apenas uma hora.

Além de Ana Amélia, o também senador Magno Malta (PR/ES), candidato à reeleição, falou em Plenário esta semana sobre os diretores da UFRJ filiados ao PSOL e PCdoB. A deputada estadual no Rio de Janeiro, Cidinha Campos (PDT), gravou um depoimento virtual acusando os socialistas e comunistas. Nesta quarta-feira (05/09), a Folha de S. Paulo estampou, sem ouvir o partido: “Reitoria da UFRJ é comandada por filiados ao PSOL; entenda”. Na matéria, o jornal publicou a declaração do candidato Jair Bolsonaro (PSL) falando em “indicação política”. “Os partidos se aproveitam, vendem seu voto aqui dentro como regra para que a administração seja deficitária e lucrativa para eles individualmente”, disse o presidenciável, segundo a Folha.

Em nota, a Executiva do PSOL repudiou as tentativas de responsabilizar a reitoria da UFRJ e o partido pelo incêndio. Defendeu o comprometimento de Leher “com a defesa da educação pública, gratuita e de qualidade e a ampliação dos investimentos públicos necessários para isso”. E lembrou que o reitor foi, na verdade, eleito, com amplo apoio da comunidade acadêmica. Como a desinformação sobre indicação política segue nas redes, o presidente do partido, Juliano Medeiros, divulgou vídeo na noite de quarta explicando, novamente, que o reitor da UFRJ e sua administração são eleitos pela comunidade acadêmica. “Não aceitaremos mentiras e calúnias que tentem colocar o povo brasileiro, em especial do Rio de Janeiro, contra o nosso partido”, afirmou.

Atualmente, o PSOL tem o maior número de seus parlamentares federais vindos do Rio de Janeiro. Nas últimas eleições municipais, chegou ao segundo turno da capital fluminense com Marcelo Freixo.

A última notícia – a se confirmar –, publicada pelo blogueiro Vicente Nunes, do Correio Braziliense, é a de que banqueiros pediram a cabeça de Roberto Leher a Michel Temer. Esta seria a condição para darem dinheiro para a reconstrução do Museu Nacional. Teriam estado presentes na conversa o presidente da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), Murilo Portugal, e do Banco do Brasil, Caixa, Bradesco, Itaú Unibanco, Santander, Safra e BGT Pactual. Segundo o blogueiro, os banqueiros gostariam que a administração do MS fosse entregue a uma OS. O jornalista afirma que o modelo não é uma “espécie disfarçada de privatização”. Pelo visto, o debate sobre o Museu Nacional ainda será alimentado por boas doses de desinformação.

*Bia Barbosa é Bia Barbosa é jornalista, especialista em direitos humanos pela USP e mestra em Gestão e Políticas Públicas pela FGV-SP. Integra a Coordenação Executiva do Intervozes.