O debate eleitoral-econômico no gueto neoliberal

A mídia tem apresentado os dilemas da economia brasileira como algo restrito à receita do golpe que restaurou a ordem neoliberal. Esse mantra impõe a versão de que não há saída para a crise fora dos estreitos limites dos ideais golpistas.

Por Osvaldo Bertolino*

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Desde o auge do iluminismo, ou movimento das luzes, cuja era tem como símbolo a Revolução Francesa, até o começo do século XX, a ideia do "livre comércio" foi tida como a única fórmula para se erigir formas de sociedade. A transformação da Rússia na primeira nação a se industrializar e a se desenvolver política e economicamente fora desse padrão chacoalhou essa verdade. Criou-se, nessa nova configuração mundial, uma dualidade que, por um lado, cresceu como extensão do modelo de socialismo soviético e, por outro, se expandiu pelo domínio econômico e principalmente por força do poderio militar das potências capitalistas.

No final da Segunda Guerra Mundial, esse quadro ficou bem delineado. Enquanto o socialismo se expandia para o Leste Europeu e cravava sua bandeira na América — Cuba — e na Ásia — China, Vietnã e Coreia — por meio de movimentos de libertação nacional e revoluções, o imperialismo "ocidental" implantava ditaduras e regimes atrelados aos seus interesses. O ponto final do bloco soviético, esculpido pelo trio Reagan-Tatcher-Gorbachov, degradou muito esse quadro.

Mesmo o projeto social-democrata, que emergiu com força na Europa Ocidental no pós-Segunda Guerra Mundial, se enfraqueceu. Na região, o desemprego atinge níveis inéditos e o déficit nas contas públicas é robusto. Houve a virada ideológica à direita do final dos anos 1970, mas, a partir de meados da década de 1990, partidos à esquerda do centro passaram a dirigir a maioria dos países da União Europeia. A badalada "onda rosa" social-democrata, no entanto, chegou a ser ameaçada de ser substituída pela amarga "onda azul" fascista. 

A perda das soberanias nacionais e de direitos históricos é uma realidade que fere profundamente o sentimento patriótico dos europeus. Na Itália, essa constatação é nítida: o governo do "ex-comunista" D'Alema chegou ao ponto de passar por cima de uma das mais queridas conquistas da classe operária, a proibição constitucional de participação do país em guerra ofensiva, ao participar ativamente do sangrento ataque imperialista à Sérvia.

Reflexos no Brasil

Claro que China, Cuba, Vietnã seguram a bandeira do socialismo com brio. Mas, com a exceção da China, esses países ainda têm muito a caminhar antes de atingir um platô em sua trajetória de crescimento. O fato é que a crise dos países periféricos está mostrando que, em um mundo de economias "globalizadas", um ponto de equilíbrio entre nações ricas e pobres está cada vez mais difícil de ser encontrado.

A Ásia, que já foi considerada o oásis para os investimentos dos ricos — o continente ainda ostenta dois pesos-pesados, Índia e a China, com seus números e ritmo de crescimento espetaculares —, sofreu um sério abalo com o furacão especulativo que começou a girar no Sudeste Asiático em 1997 e jogou a pá de cal sobre a veracidade daquilo que está no cerne do modelo neoliberal: a ajuda dos capitais especulativos para desenvolver uma nação. Quando chegaram os meneios mais violentos da crise, essa ideia foi quase que definitivamente avariada. E mais: a tese de uma economia mundialmente costurada saiu bem arranhada.

Os reflexos foram sentidos com força no Brasil, com o mandato de Fernando Henrique Cardoso (FHC) entrando em sua fase mais mambembe. Era fácil enunciar a crítica a tudo aquilo. Tanto que a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva em 2002 foi uma das mais previsíveis decisões eleitorais da história brasileira. Afinal, o que o neoliberalismo considerava maus hábitos que precisavam ser corrigidos com a "lição de casa" era visto na periferia do mundo como um feixe de tradições a serem preservadas. Protagonismo do Estado, valorização do preço do trabalho, incentivo ao mercado doméstico são pressupostos incompatíveis com a lógica neoliberal.

Gueto neoliberal

Ou seja: precisamente a abertura de fronteiras prescrita pelo projeto neoliberal, conceito tão caro ao capitalismo monopolista e especulativo, estava sendo confrontada. O turbilhão que chacoalhou as economias neoliberais abriu uma brecha para que outros países pobres dissessem o que estava preso na garganta havia anos: em questões econômicas internacionais, os ricos deveriam reduzir a arrogância. O sonho, como os teóricos neoliberais vislumbraram, acabara. As particularidades nacionais voltaram a se impor. Tudo sugeria que o mundo caminharia balizado pelos conceitos de nação, de região, de direitos civis, de equilíbrio econômico, de Estado-nação.

Na América Latina essa lógica sofreu um baque com a onda golpista para restaurar a ordem neoliberal, mas não é desprezível a tenaz resistência cubana, boliviana e venezuelana. E isso tem impactos em processos políticos como as eleições presidenciais no Brasil. A disputa entre dois campos bem demarcados tem de um lado o ideal democrático e desenvolvimentista e de outro o programa do golpe, traduzido em mantra da mídia, resultado de um domínio histórico de uma elite não afeita à ideia de horizontalidade social.

Para essa elite, o conceito de uma democracia de massa é um valor inaceitável. São pessoas de um pequeno círculo com frequente nostalgia do autoritarismo e que trocou recentemente o ambiente democrático pelas armas do regime militar para se beneficiar de mais alguns pontos na taxa do PIB. Esse quadro deixa ver também que essa mesma elite ainda torce o nariz para a abertura do Estado para um governo que coordene o desenvolvimento nacional e social. O desafio é tirar esse debate do gueto neoliberal.