50 anos de carreira do desenhista Edgar Vasques

Em um ateliê montado no fundo de sua casa, no bairro Petrópolis, em Porto Alegre, sob a luz de uma luminária que só quando enrolada em fitas adesivas ilumina o ponto exato da mesa de desenho, Edgar Vasques recebeu a reportagem do Sul21 na última quarta-feira (22).

Por Luís Eduardo Gomes

Edgar Vasques, artistas grafico e desenhista completa 50 anos de carreira - Foto: Guilherme Santos/Sul 21

Trata-se de um espaço de trabalho que também poderia ser considerado um museu da arte gráfica gaúcha e nacional, pois reúne centenas, quiçá milhares, de exemplares e originais que ele vem produzindo ao longo de suas cinco décadas de carreira. São livros, revistas, pastas e folhas que se acumulam em estantes e caixas, compondo uma cena artisticamente caótica ao lado de prêmios e quadros com a imagem de seus personagens.

O mais antigo deles, Rango, criado em 1970, estrela o mais recente livro a ocupar uma dessas caixas, a que chegou no início da semana trazendo alguns exemplares da obra que ele lança neste sábado (25) no 45º Salão Internacional de Humor de Piracicaba. Crocodilagem, é o 17º livro que reúne tiras do personagem, mas o primeiro em que Rango aparece colorido. Isso ocorre porque a maioria dessas tiras foram publicadas no jornal Extra Classe, produzido pelo Sindicato dos Professores do Ensino Privado do RS (Sinpro-RS), onde Vasques publica este material desde 2007. É também no Salão de Piracicaba que Vasques será homenageado pelos 50 anos de carreira, com a exposição retrospectiva “50 anos no pincel”.

Esses 50 anos, na verdade, poderiam ser 54 já. “O primeiro desenho que eu fiz e me pagaram, portanto o primeiro trabalho profissional, eu tinha 14 anos. Eu fiz uma ilustração de futebol na capa dum carnê do campeonato gaúcho. Era um caderninho que era dado de brinde. Era uma cena de uns caras jogando bola. Me pagaram. 1964”, conta.

Contudo, entre esse primeiro trabalho e os próximos, há um hiato de quatro anos. Um intervalo interrompido quando, após terminar o colegial e passar um mês em Paris no início do ano de 1968 — onde pôde respirar os ares pré-maio de 68 –, Vasques concede entrevista ao jornal Correio do Povo sobre os desenhos que fez da cidade luz. As peças agradam tanto que, de entrevistado, ele passa a contribuidor. “Eu comecei a trabalhar com o caderno de sábado do Correio do Povo. O primeiro desenho que fiz foi uma ilustração para um conto do Armindo Trevisan. Aí eu já tinha 18 anos e nunca mais parei. Isso que eu conto como marco zero da carreira, mas teve esse ponto fora da curva aos 14″, explica.

De lá para cá, foram milhares de obras. Vasques nem sabe quantas. Só para contar as que se espalham pelo seu ateliê seriam necessárias várias horas. Usualmente, ele é apresentado como cartunista, famoso por suas charges e tiras, mas faz questão de salientar que é, acima de tudo, um desenhista. Naquela quarta-feira em que recebeu a reportagem para uma conversa sobre os seus 50 anos de carreira, trabalhava em uma ilustração em aquarela de um desenho que havia começado em 1994, a agora, 24 anos depois, calhava de ter resolvido terminar. Durante a conversa, nos mostrou um desenho do mercado de 1998, ainda sem cores, mas que conta com pequenas anotações feitas à época das cores que pretendia colocar em cada espaço da tela. Um trabalho ainda a ser acabado.

“Eu desenho o mundo que está a minha volta. Sou um apaixonado pelo visual do mundo e procuro desenvolver isso de acordo com as minhas capacidades. Mas acabei enveredando também pelo lado do humor e tenho feito charge, caricatura, cartum e quadrinhos humorísticos durante 50 anos”, diz. “O espaço que havia no mercado quando eu comecei, que era mais fácil de entrar, era fazer charge e enveredei por esse caminho porque enveredei uma verve humorística”.

Perguntado sobre o que mudou nestes 50 anos, ele dispara: “Espero que tenha evoluído algo”, para depois dizer que, sim, há uma visível evolução técnica e visual muito grande. “Ainda bem que é assim”.

Ele ressalva, porém, que o mesmo não pode ser dito para sua “carreira”, ao menos nos significados que costumamos dar a esse termo. Depois de décadas trabalhando como empregado em empresas de comunicação, Vasques voltou a viver de trabalhos autônomos. “De certa forma, aos 50 anos de profissão, eu me sinto como se estivesse começando, lá com 18 anos, porque a situação é praticamente a mesma”.

A arte gráfica aplicada, que durante muito tempo teve como principal espaço de veiculação a mídia impressa, não escapou à crise pela qual passam os veículos impressos. Vasques frisa que não se trata de uma crise de espaços para a publicação, porque as redes sociais funcionam, na avaliação do artista, como uma “lente de aumento” e um “auto-falante enorme” das produções.

“Tudo aparece ali, bom ou ruim, bem ou mal feito, e, independente da qualidade, vai ter os seus seguidores. O cartum está está inserido nessa situação, pagando o preço que todas as manifestações pagam. Então, ele é prestigiado na rede social, as pessoas curtem, mas essa popularidade não garante estabilidade a ninguém. O cartunista é usado na rede social, mas, na maioria das vezes, não obtém nenhum retorno profissional, financeiro e de estabilidade com isso. As pessoas continuam achando que uma piadinha é uma coisa fácil de fazer e não precisa remunerar o artista”, diz.

Uma arte menor?

Para Vasques, uma coisa que talvez não tenha mudado nesses 50 anos, e une a era da mídia impressa à das redes sociais digitais, é o fato de muitas vezes o trabalho dos cartunistas ter sido e continuar sendo considerado uma “arte menor”.

“O cartum é um fazer artístico que tem, em geral, ampla aceitação popular, mas o reconhecimento profissional é que não existe. E não existe em parte por um preconceito que se mantém. Embora o cartum tenha conquistado uma respeitabilidade ao longo dessas décadas, ainda existe o preconceito de que o cartum é uma arte menor, é um subproduto menos valioso em termos de mercado da arte gráfica, o que é um absurdo, porque é uma coisa dificílima tecnicamente de fazer. O cartunista é um grande artista, no sentido de que é aquele que enxerga o mundo e depois depõe sobre ele”, diz Vasques.

Aos 68 anos, ele segue um entusiasta da linguagem gráfica, seja na charge, caricatura ou no cartum propriamente dito, alternando o humor que se utiliza de fatos contemporâneos — como é o caso da charge — com aquele da piada universal, não ligada a um acontecimento em especial, característica do cartum. “Todas essas aplicações são fruto de um trabalho mental extremamente preciso e extremamente especializado”.

Todo mundo tem humor, diz Vasques. Para ele, o humor é inerente à forma como o indivíduo vê e interpreta o mundo ao seu redor, muitas vezes servindo como mecanismo de defesa contra esse entorno. Mas, ressalva, que é justamente o artista, o cartunista no caso da arte gráfica, que consegue fazer do humor uma atividade especializada.

“O humor é uma linguagem diferenciada que tem sido usada ao longo do tempo para atrair as pessoas para entenderem o que está acontecendo no mundo. Se a gente pensar bem, olha a importância do cartum. A instância crítica que ele é. Por que o cartum é diferenciado e privilegiado? Por que ele faz a crítica ao que está acontecendo, seja ela uma crítica política, de costumes, estética ou de qualquer tipo, mas usando uma linguagem privilegiada que é o humor, uma linguagem que promete ao leitor o prazer. Rir, achar graça é um prazer, é uma descompressão psicológica, tem um aspecto libertador, dos problemas, das broncas que tu está vivendo, sofrendo, e como tem hoje em dia, né? O riso liberta, de certa forma. Então, as pessoas vão ter a mensagem crítica com a promessa de se divertirem. É mais fácil tu entrar nessa proposta do que ler um texto crítico sisudo ou ouvir um discurso. Ali tu estás rindo, mas para rir tem que entender o que o cara está dizendo, e no entender está a crítica”, diz.

Charge “Torres Gêmeas”, 2001, obra nunca publicada individualmente | Reprodução da obra do cartunista Edgar Vasques

Vasques acredita que existam duas maneiras de se fazer humor. A primeira, na qual se enquadra, é progressista, na qual a linguagem é utilizada para o esclarecimento sobre o mundo que nos cerca. “É o humor que bota o dedo na moleira do culpado, do poderoso que está te mentindo, do safado que está te roubando e vendendo um discurso de salvação nacional. Este é o humor que te esclarece. Depois que tu passa por ele, tu começa a entender melhor as coisas”.

Por outro lado, diz que também há a maneira conservadora, que reforça o status quo, os preconceitos. “É o humor que goza o viado, o baixinho, o português, a sogra, entendeu? Reforça, acomoda e cria uma zona de conforto para quem tem preconceito. ‘É isso mesmo, o português é burro’. ‘A sogra é o diabo’. Esse humor retrógrado, que mantém o preconceito, que obscurece as coisas em vez de esclarecer”.

Na concepção do cartunista, foi este segundo tipo de humor que gerou, como reação, o chamado “politicamente correto”, considerado o ethos inimigo por humoristas de diversas vertentes que costumavam ter como ganha-pão justamente piadas em que estes grupos eram os alvos. “Ele é tão agressivo e tão inútil, em último caso, que, no primeiro mundo, onde as coisas são mais organizadas, por assim dizer, em termos de repercussão social, começou a haver processo por causa disso. Começou a ficar o caro para o veículo que veicula isso, para o cara que produz, para o cara que paga. Então começou a haver essa espécie de censura, porque é uma espécie de censura”, diz.

Vasques acredita que há um feito positivo nessa reação, cristalizado no estímulo às pessoas a pensarem se estão respeitando seus pares na convivência. Contudo, alerta que há, como em tudo na vida, o risco desse movimento se tornar contraproducente ao redundar no exagero.

“Tu proibir alguém de fazer uma piada com fulano, porque vai se ofender, é um troço que pode, potencialmente, se levado ao exagero, acabar com o humor. E os poderosos gostariam muito de que um cara que tem um cargo eletivo, por exemplo, não pudesse ser caricaturado, como já houve tentativas por aí. ‘Ah, não, tem que respeitar o cargo’. Tudo bem, eu não estou esculhambando o cargo, estou esculhambando quem está no cargo. E, se eu quisesse esculhambar o cargo, também podia. Eu posso achar que a organização da sociedade não devia ser assim e fazer uma piada com isso. Isso é besteira”, avalia.

“O quadrinho é o cinema feito à mão”

“Tu é o roteirista, tu é o câmera, tu é o figurinista, o maquiador, o iluminador, é tudo. Um cara que faz. Olha a habilidade e quantidade de coisas que tu é obrigado a desenvolver”. É assim que Vasques define um dos principais meios que ele escolheu para divulgar seus desenhos, o quadrinho.

Ele explica que há diversas formas de apresentar um quadrinho, como um álbum ou tiras. Também traça um paralelo entre as formas de apresentação do desenho desenvolvidas ao longo do tempo com às da literatura. “Tu pode ter um conto e tu pode ter uma tira. Pode ter uma graphic novel e uma novela escrita. Pode ter uma anedota e um cartum. Pode ter uma crônica comentando o que está acontecendo e ter uma charge. São formas paralelas, com a diferença de que as formas da arte gráfica aplicada são gráficas, tem sempre uma imagem que conduz o entendimento do que foi dito”.

Nesse contexto, Crocodilagem é uma coletânea de tiras, ou pequenos contos que se esgotam em si mesmos, mas que sempre lançam mão de um mesmo grupo de personagens, de um ambiente e uma ideia que sustentam a obra. “No caso do Rango, desde o começo era a fome, a miséria. Eu via a miséria na rua, no começo dos anos 1970, mas ninguém falava nisso. Era o Brasil grande, corrente pra frente, a ditadura eufórica, Brasil tricampeão do mundo, e a miséria ali, crescendo. Eu me apavorei com aquela situação, achei um absurdo aquilo, era uma situação kafkiana, em que não batia a realidade com a narrativa”.

Num contexto que a imprensa era censurada, apesar de Vasques achar que não era esse o motivo da miséria não ser retratada, as universidades cumpriam a função de serem espaços culturais efervescentes. Foi assim, em 1970, na Faculdade de Arquitetura da UFRGS, curso que levaria mais de 10 anos para concluir por causa das exigências do trabalho na imprensa, que ele criou Rango, o “faminto total”.

“Eu achava na época, e acho até hoje, que não adianta o progresso tecnológico vertiginoso que a gente tem vivido se tu não consegue resolver o problema inicial e crucial de todo mundo: ter o que comer. Entende? Ao longo desse tempo, porque o Rango talvez seja o personagem em atividade mais antigo da tira brasileira, desde 1973 na imprensa, não adianta todo mundo ter um computador à mão e o Rango continuar valendo, bicho, porque continua tendo gente na miséria, passando fome. Quando o País acha que vai superar, a ONU diz que saiu da linha da miséria, eu faço uma tirinha assim:

Eu, que acho que o humor serve para esclarecer, continuo fazendo o meu trabalho e infelizmente constatando que o coitado do meu personagem, que é um coitado, continua valendo. Eu aposentaria o Rango feliz se as condições permitissem”.

Lançamento em Porto Alegre

Crocodilagem, o novo livro do Rango, será lançado em Porto Alegre no próximo dia 1º de setembro, em uma sessão de autógrafos marcada para a Galeria Hipotética (Visconde Rio Branco, 431), a partir das 19h, que também contará com uma exposição das tiras originais do personagem presentes no livro. “Dia 1º de setembro, quem quiser o livro autografado, compareça lá que vai ter essa chance”, convida Vasques.