Um balanço da gestão de Pedro Parente

 A Petrobrás se desresponsabilizou de atuar em favor da segurança energética nacional, da autossuficiência e da garantia do abastecimento do mercado interno. Em vez disso, passou a priorizar a entrada de players e traders estrangeiros, a retomada da remuneração dos acionistas e o encolhimento de sua escala e de seu escopo de atuação.

Por William Nozaki e Rodrigo Leão*

Pré sal / Petrobras

 Os interesses econômicos e políticos por trás do conjunto de medidas adotadas pela Petrobras no biênio 2016-2018 ainda não foram observados com o devido cuidado. Um balanço da gestão de Pedro Parente também é uma avaliação dos pontos de convergência e das fissuras do bloco no poder que primeiro montou as bases para a ascensão do CEO, mas depois abriu o chão para sua queda.

Os ressentimentos com o giro liberalizante do segundo governo Dilma, os traumas provocados pelo impacto do golpe, o ódio gerado pela Operação Lava Jato e pela grande imprensa contra a Petrobras e o assombro com a avalanche de medidas contra a Constituição de 1988 e a Consolidação das Leis do Trabalho de 1943, que sustentou nossa modernização, significaram uma ruína que levantou uma nuvem de poeira. Por dois anos se turvou o olhar da opinião pública para o conjunto de interesses que estavam por trás das medidas tomadas pela Petrobras.

Mais ainda, a própria heterogeneidade de microinteresses privatistas e personalistas no interior do condomínio que ocupou o governo tornou a nuvem de sujeiras no ar ainda mais espessa, fazendo da decifração do cenário um exercício bastante complexo. Entretanto, os desdobramentos recentes nos permitem reunir, ainda que no calor da conjuntura, algumas peças de um quebra-cabeça que talvez só seja mais bem montado no futuro. Vejamos.

A coalizão que deu sustentação a Pedro Parente foi composta por um conjunto diverso de interesses, nem sempre coerentes e coesos, entre o agronegócio, o mercado financeiro, as petrolíferas estrangeiras, as grandes importadoras, os acionistas da companhia e o Planalto. Em conjunto com mudanças promovidas pelo Executivo e o Legislativo, o primeiro ano da gestão de Parente navegou em relativa tranquilidade na medida em que um primeiro ciclo de medidas contemplou boa parte das demandas colocadas por esses setores que compuseram, ainda que temporariamente, sua base de sustentação.

O segmento do agronegócio, principalmente o sucroalcooleiro e o da soja, beneficiou-se da alteração da política de preço divulgada em setembro de 2016, bem como do anúncio, logo em seguida, de que a Petrobras abandonaria sua atuação no setor de biocombustíveis. A nova política de preços – fortemente atrelada às cotações do barril internacional do petróleo e do câmbio – permitiu um ganho de competitividade ao setor do etanol. Não por coincidência, entre novembro de 2016 e janeiro de 2018, o volume de vendas de etanol hidratado em relação ao de gasolina saltou de 27% para 41%. A saída dos biocombustíveis, por sua vez, sinalizou uma reversão da política de apoio aos pequenos produtores e à utilização de outras culturas para a produção de biodiesel. Essa medida, sem dúvida, agradou aos produtores de biodiesel do complexo da soja.

O mercado financeiro e os acionistas minoritários comemoraram o aumento do plano de desinvestimento da Petrobras em janeiro de 2017, ao mesmo tempo que a estatal manteve a gestão excessivamente austera da dívida da empresa, ampliando os cortes de custos e a antecipação de pagamentos para passivos jurídicos norte-americanos não julgados. Nesse mesmo compasso, ainda no primeiro semestre de 2017, a Petrobras apresentou uma política de governança e conformidade que não imunizou a companhia de interesses que lhe deveriam ser externos e estrangeiros, endossando a nomeação do conselho de administração marcado pela maior presença de pressões das petrolíferas estrangeiras e do rentismo financeiro.

As petroleiras estrangeiras conquistaram uma janela de oportunidade para assegurar reservas de petróleo e gás natural do pré-sal em função da postura cada vez mais passiva da Petrobras nos leilões, principalmente após a ampliação do plano de desinvestimento. Esse fato, associado às mudanças regulatórias aprovadas pelo Congresso de desobrigar a Petrobras de participar de todas as rodadas de licitação pré-sal, em novembro de 2016, e de reduzir o percentual mínimo de conteúdo local nas mesmas rodadas de licitação, em fevereiro de 2017, abriu espaço não só para a entrada de novas operadoras estrangeiras no pré-sal, como também para a garantia da compra de bens e serviços aos fornecedores de seus países de origem.

Nesse período, a Petrobras ainda se desfez de inúmeros blocos exploratórios de petróleo (como o BM-S-8, incorporado pela norueguesa Statoil) e campos do pré-sal (como os de Iara e Lapa, arrematados pela francesa Total) em transações que também privilegiaram, em geral, as grandes petrolíferas internacionais, com destaque para as norte-americanas e chinesas.

Outros players do setor, principalmente as importadoras de derivados de petróleo, aproveitaram-se tanto da nova política de preços como da mudança na política de refino e gás da Petrobras. Ainda em setembro de 2016, a direção da estatal anunciou o interesse de buscar parceiros para atuar no refino (tal medida foi introduzida em abril de 2018, com o anúncio da desintegração de quatro refinarias: a Refap, a Repar, a RLAM e a RNEST), bem como executou uma contínua subutilização do parque de refino, cujo percentual de uso da capacidade das refinarias caiu de 79% em outubro de 2016 para 67% em janeiro de 2018. Ao seguir “fielmente” os preços internacionais e ao diminuir a utilização de suas refinarias, a Petrobras abriu um espaço importante para atendimento do mercado interno, ocupado pelas importadoras.

A Petrobras lavou as mãos e se desresponsabilizou de atuar em favor da segurança energética nacional, da autossuficiência em petróleo e derivados e da garantia do abastecimento do mercado interno de combustíveis. Em vez disso, a companhia passou a priorizar de forma exclusiva a abertura do mercado de óleo e gás para a entrada de players e traders do mercado estrangeiro, a retomada da remuneração dos acionistas e o encolhimento de sua escala e de seu escopo de atuação. De quebra, a nova política de preços e os desinvestimentos em setores específicos caíram no gosto do agronegócio e do mercado financeiro.

Com isso, solidificou-se uma forte base de coalizão em torno da gestão de Parente, que ainda surfou na fama intensificada pela grande mídia de bom gestor e de nome “irretocável” para recuperar uma empresa supostamente quebrada. Essa opção evidentemente agregou certo apoio da indústria nacional e da população mais geral, a despeito da forte rejeição existente no interior dos movimentos sociais, incluindo os próprios trabalhadores da Petrobras.

No entanto, a partir da gestação de um segundo ciclo de medidas desde julho de 2017, essa suposta sólida base de coalizão de apoio à gestão de Parente se evaporou em menos de um ano, cabe ressaltar, com uma generosa contribuição do Executivo.

Em primeiro lugar, em julho de 2017, o governo anunciou o aumento do PIS-Cofins para todos os combustíveis, incluindo o etanol, o que evidentemente gerou relativa insatisfação desse segmento por conta do aumento da tributação.

Em segundo lugar, a flexibilização e a redução expressiva dos índices de conteúdo local, apesar de agradar às petroleiras internacionais, seguiu bloqueando qualquer processo de substituição de importações e o potencial de irradiar ganhos com investimentos para as indústrias naval, de engenharia pesada e de construção civil. Tais medidas esgarçaram as relações da direção da empresa com parte dos segmentos industriais e com uma fração do corpo intermediário, gestores e engenheiros ligados à petrolífera.

Em terceiro lugar, se num primeiro momento Petrobras, Ministério de Minas e Energia (MME) e Agência Nacional de Petróleo (ANP) comungaram da mesma cumplicidade para mudar o marco regulatório do pré-sal do regime de partilha para o de concessão, favorecendo sua desnacionalização, no último período a empresa alimentou divergências com o governo sobre o contrato da cessão onerosa, no qual a Petrobras é credora do Planalto, e a possibilidade de realização do leilão de seu excedente.

Em quarto lugar, o anúncio do fim das atividades no segmento de fertilizantes, em março de 2018, gerou uma fragmentação dentro do agronegócio. Isso porque a saída da Petrobras significaria uma “pá de cal” em qualquer possibilidade de autonomia no fornecimento de fertilizantes para a produção agrícola nacional, tornando o setor totalmente dependente das importações.

Em quinto lugar, e talvez mais importante, há a mudança no reajuste dos preços dos combustíveis. A Petrobras manteve a fórmula, atrelada ao barril internacional de petróleo e ao câmbio, mas em julho de 2017 alterou a temporalidade dos reajustes, que passaram a ser diários em vez de mensais. Essa mudança, em especial nos últimos quatro meses, quando houve uma escalada acelerada do preço do barril do petróleo, desorganizou completamente a estrutura de custos de diversos setores da indústria e de serviços, sobretudo o de transporte.

Portanto, a barafunda entre o Planalto e a Petrobras, e os impactos deletérios das medidas fiscais, de desinvestimento e de preços da estatal de petróleo desordenaram aquela base de coalizão na qual se sustentava a gestão de Parente, principalmente de frações do agronegócio, de parte da indústria e do serviço de transporte.

Em meio à exacerbação da crise provocada por essas medidas, observamos, por um lado, a renúncia do conselheiro da empresa oriundo da Shell, sinalizando o afastamento das petroleiras estrangeiras com a gestão de Parente, e, por outro, a greve dos caminhoneiros reacendendo o espírito de paralisação dos petroleiros, que passaram a pedir a renúncia de Parente. O sentimento de desgaste veio acompanhado de críticas de analistas do mercado financeiro, economistas de viés liberal e, inclusive, membros de seu partido, o PSDB.

O ápice da crise, ao que pareceu, deu-se paradoxalmente pela própria intransigência de Parente na negociação com governo e caminhoneiros, pois, ao diminuir a margem de manobra dos termos colocados na mesa, indiretamente ele incitou o governo a cogitar mudança no ICMS, provocando reação dos governadores, e alterações na Cide e no PIS-Cofins, que demandariam mais cortes em gastos sociais e de investimentos, gerando mais insatisfação em diferentes setores.

Essa sucessão de atos foi minando as bases políticas e econômicas de sustentação de Parente na presidência da Petrobras.

O desgoverno denuncia a fragmentação dos interesses do latifúndio nacional, do rentismo internacional, do pacto federativo, das diversas alas parlamentares e das alianças partidárias que dão sustentação ao governo de Michel Temer, tudo isso em um ambiente de incerteza na geopolítica e na geoeconomia internacional. O condomínio oportunista que está à frente do país se encontra em ruínas; seus sócios e parentes começam a dar mostras de que entraram no modo “salve-se quem puder”. Somente as urnas podem colocar um fim a esse desenfreado “barata-voa” em que se transformou a política e a economia no Brasil. Ou as urnas governam a Petrobras ou a Petrobras, a dar sequência a essa política, desgoverna o Brasil.

*William Nozaki e Rodrigo Leão, diretores técnicos do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep), são, respectivamente, professor de Ciência Política e Economia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e pesquisador visitante do Núcleo de Estudos de Conjuntura Econômica da Universidade Federal da Bahia (UFBA).