Individualização: Nova forma de regulação da proteção social à saúde

A crise econômica desperta o interesse pelo debate da proteção social, do sistema de seguridade social, da sua sustentabilidade econômico-financeira, e suas consequências no futuro. Mas, um outro fenômeno corre em paralelo, a saber: o que pode vir a ser proteção social hoje, para pessoas que vivem num contexto de desmonte das políticas sociais, e qual deve ser o papel da Saúde Pública nesse novo contexto.

Por Ricardo Lima Jurca*, no Saúde Popular

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No fundo, trata-se menos da primazia do Estado social sobre a sociedade, e mais sobre a desestabilização protetiva quando se observam como está se criando um sistema híbrido de proteção social apoiado no estabelecimento de “quase” direitos. Ou seja, o sistema de proteção que já não busca mais o horizonte tradicionalmente concebido no contexto do Estado de bem-estar social, contribui para a emergência da coprodução indivíduo-mercado-estado por dentro das políticas públicas sociais.

Mesmo para o Brasil, que não realizou a plenitude da sociedade salarial, esse fenômeno acompanha e contribui para a transformação da questão social brasileira.

Em outros termos, os programas sociais vão se desmanchando e, simultaneamente, fabricando outros tipos de produção que cumprem o papel do Estado-Providência, no caso os benefícios sociais individualizados passam a representar uma nova ferramenta para o gerenciamento de populações pobres, além de ferramentas padronizadas de conhecimento e classificação.

Esse talvez seja um dos efeitos mais perversos do corte de gastos dos próximos vinte anos, porque leva à expansão da implementação da gestão da vida das pessoas para um novo patamar, em que a invasão da vida privada das pessoas se faz através de um conjunto de planejamentos sociais privados de gestão da vida.

Reestruturações

Como consequência serão acentuadas as restruturações neoliberais, por meio da responsabilidade individual. É a restrição da capacidade política e do abafamento da voz coletiva, ou seja, a fragmentação administrativa, o dualismo de classe dos programas de ajuda e das clientelas, o caráter residual da assistência pública e a “filtragem” racial da política.

Em relação a descentralização das estipulações dos programas para estados e municípios, ela amputa a cidadania efetiva dos pobres ao tomar essas estipulações variáveis e dependentes dos orçamentos locais dos equilíbrios do poder político e burocrático.

Outra consequência dos cortes dos gastos é a redefinição da fronteira entre Estado e mercado, acelerando a mercantilização do auxílio público dentro dos programas sociais, cuja função é “fazer” e “desfazer” os direitos sociais, examinando os casos individuais de cada beneficiário.

Como as interfaces entre o Estado e o mercado estão, muitas vezes, diluídas no cotidiano das relações sociais das periferias, e entre tantas outras práticas sociais cotidianas que organizam o espaço social da favela, as agentes comunitárias de saúde do programa Saúde da Família passam a ser o vínculo principal dos beneficiários com o Estado.

Modelo reproduzido

Por exemplo, a forma como as agentes fazem a reprodução e a transmissão da comunicação com o(a)s usuário(a)s é interessante para compreender o processo de privatização e a crescente segmentação do sistema de saúde. As ACS, que residem na comunidade, têm como função conectar o(a)s usuário(a)s aos serviços públicos. O cara-a-cara no balcão dá lugar a formas cada vez mais singularizadas de orientação em situações de acesso aos serviços públicos, que regulam as relações entre os usuários, o Estado social e o mercado.

O indivíduo que aí se produz é um indivíduo institucionalizado. O indivíduo se percebe, e é constrangido a se perceber, como um elo entre o Estado e o mercado, um produtor e, ao mesmo tempo, beneficiário dos programas sociais. É neste sistema de produção de si que a possibilidade de enfrentar os labirintos e caprichos das instituições e buscar oportunidades em meio às formas sociais líquidas e transitórias, é colocada à prova.

As pessoas acabam dizendo, se somos indivíduos individualizados é porque existe uma profunda acentuação dos novos perfis individuais a partir das instituições. E temos como indivíduos que aprender a responder às prescrições das instituições.

Na corda bamba

Com o corte de gastos sociais do governo Temer, nos próximos 20 anos, as políticas públicas passam a demandar cada vez mais do indivíduo soluções biográficas para contradições sistêmicas.

Por um lado, as expectativas individuais e as exigências por acesso à saúde dependem da organização institucional da saúde, pelo outro, e frente ao que muitos indivíduos percebem como obstáculos insuperáveis, se reforçam atos de responsabilidade pessoal em programas sociais já existentes.

É como se os indivíduos estivessem caminhando na corda bamba e fazendo malabares, quando caem não sabem se há uma rede que os proteja e nesse sentido precisam urgentemente tecer as suas próprias redes.

A essa tarefa, também estarão dedicados os programas sociais de auxílios social de diversos estados do país, com o intuito de “reclassificar” milhares de usuários como merecedores ou não da assistência, estabelecendo novos vínculos de risco, novos padrões de laços sociais, e produzindo novas práticas sociais, que orientam os princípios neoliberais no campo da saúde individualizada.