Luiz G. Schymura: Respeitar teto nos próximos anos é impossível

 Mesmo na hipótese de eleição de um candidato extremamente fiscalista, respeitar o teto até 2022 será uma missão quase impossível.

Por Luiz Guilherme Schymura*

Muito se tem discutido neste início de campanha eleitoral sobre o teto dos gastos federais imposto pela Emenda Constitucional (EC) 95/2016. Diversos pré-candidatos criticam o dispositivo, mas parece que a tendência é mais no sentido de modificá-lo do que propriamente de aboli-lo. Boa parte dos especialistas, incluindo vários daqueles que assessoram pré-candidatos, reconhecem a necessidade de algum mecanismo que ancore o crescimento da despesa pública, como parte principal da solução para o dramático problema fiscal brasileiro.

A dificuldade, entretanto, é que, tal como foi desenhado, o atual teto parece impossível de ser respeitado ao longo do próximo mandato presidencial. Que fique claro: este vaticínio não se baseia na suposição de que o próximo presidente será leniente no trato das contas públicas. Pelo contrário, mesmo na hipótese de eleição de um candidato extremamente fiscalista, respeitar o teto até 2022 será uma missão quase impossível.

A economista Vilma Pinto, pesquisadora do FGV IBRE, apresenta um conjunto de projeções que deixam claro, entre outras conclusões relevantes, que o teto estabelecido pela EC 95 provavelmente será rompido em questão de dois ou três anos. Vilma trabalhou com cenários alternativos para radiografar a situação da política fiscal brasileira em face da emenda constitucional do teto de gastos. Ela parte das premissas macroeconômicas do FGV IBRE e utiliza projeções demográficas para estimar o crescimento do número de benefícios previdenciários e assistenciais.

Em um dos cenários, construído para balizar o exercício, as despesas com pessoal e encargos (incluindo os inativos e pensionistas) se mantêm constantes como proporção do PIB, seguindo tendência histórica; os subsídios e subvenções seguem a projeção do Tesouro Nacional, no caso do PSI, e a inflação, nos demais casos; o restante dos gastos, incluindo saúde e educação, cresce de acordo com a inflação; e a atual regra do salário mínimo, de reajuste pela inflação mais o crescimento do PIB de dois anos antes, é mantida até o horizonte das projeções.

É importante notar que, neste cenário, também as despesas discricionárias crescem de acordo com a inflação, a partir do seu valor de R$ 124 bilhões previsto para 2018. Trata-se, portanto, de uma simulação que simplesmente ignora a existência do teto e prevê um comportamento inercial para a política fiscal. Neste cenário, em 2026 os gastos federais estariam R$ 524 bilhões acima do permitido pelo teto. Supondo-se todas as hipóteses acima constantes, mas com mudança da regra do salário mínimo, que a partir de 2020 cresceria apenas pela inflação, o estouro do teto em 2026 seria reduzido a R$ 223 bilhões.

Esse exercício indica que respeitar o teto ao longo dos próximos anos é um desafio provavelmente insuperável. É preciso observar que as hipóteses do cenário combinam projeções de gastos obrigatórios – que só seriam diferentes em caso de drásticas reformas legais e constitucionais – com suposições bastante razoáveis sobre outros gastos: a despesa de pessoal seria contida no seu atual tamanho em relação ao PIB e as discricionárias só se elevariam, a partir do presente patamar (que é bastante apertado), pela inflação.

Segundo as projeções de Vilma, para que o teto seja cumprido, as despesas discricionárias teriam de cair, em termos reais, de R$ 124 bilhões em 2018 para R$ 104 bilhões em 2019; R$ 70 bilhões em 2020; R$ 37 bilhões em 2021; e -R$ 2 bilhões em 2022, último ano do próximo mandato presidencial. E este é o cenário em que o salário mínimo passa a ser corrigido apenas pela inflação a partir de 2020. Caso a atual regra seja mantida, o cumprimento do teto obrigaria que a despesa discricionária fosse reduzida praticamente a zero em 2021, e em 2022 teria que ser “negativa” em R$ 56 bilhões.

Para que se tenha uma ideia do que isso significa, as despesas discricionárias incluem todo o gasto com a máquina pública (excluindo folha e custeio de saúde e educação) e os investimentos federais. Segundo Manoel Pires, pesquisador associado do FGV IBRE, um nível anual em torno de R$ 120 bilhões parece ser o mínimo para que os serviços do Estado permaneçam funcionando de forma emergencial, mas ainda assim o capital físico do governo continuaria em deterioração, numa situação que provavelmente não seria sustentável por muito tempo. Assim, o nível de despesas discricionárias de R$ 104 bilhões em 2019, compatível com o cumprimento do teto (sempre dentro das hipóteses mencionadas acima), parece já estar em território crítico em termos de funcionamento mínimo do governo. A partir de 2020, com certeza não há margem de manobra.

A necessidade do cumprimento do teto levará necessariamente à inoperância da máquina pública. No final do próximo mandato presidencial, já não haveria um governo propriamente dito se o teto estivesse sendo cumprido dentro das hipóteses do exercício – o que é uma situação absurda e paroxística e apenas sinaliza que haverá um impasse.

Vilma Pinto vai mais longe. Ela traça um segundo cenário, no qual os dispositivos da EC 95 são acionados em função da não observância do teto. Com o limite violado em 2020, as sanções previstas no texto constitucional estabelecem, em linhas gerais, a proibição de: aumentos nominais dos salários, aposentadorias e pensões para o funcionalismo; criação de cargos; alteração de carreiras; novas contratações; realização de concursos públicos; qualquer concessão nova de prêmio ou vantagem para os servidores; qualquer criação de despesa obrigatória; e, finalmente, quaisquer medidas que impliquem elevação de despesa obrigatória acima da inflação.

Segundo os cálculos, a vigência simultânea de todas essas vedações não seria suficiente para colocar a trajetória das despesas federais numa rota compatível com o cumprimento do limite de despesas. Em 2020, por exemplo, os dispêndios seriam de 19% do PIB num cenário hipotético sem gatilho e sem EC 95, mas supondo que o salário mínimo já passasse a ser ajustado apenas pela inflação (sem esta última suposição, iriam a 19,2%). Mantendo a hipótese sobre o não reajuste real do mínimo e supondo o acionamento de todos os gatilhos da EC 95, a despesa cairia para 18,7% do PIB.

Entretanto, para se cumprir o teto em 2020 elas teriam que recuar ainda mais, para 18,1%. Esta defasagem entre a trajetória da despesa com os gatilhos da EC 95 acionados (e o mínimo congelado em termos reais), de um lado, e a evolução necessária para cumprir o teto, do outro, vai aumentando ano a ano. Em 2025, os gastos com os gatilhos acionados seriam de 17,3% do PIB, mas o cumprimento do teto exigiria uma redução para 15,9% do PIB.

O significado desse segundo exercício é claro: se mantida a EC 95, tanto o rompimento do teto quanto o consequente acionamento das vedações se tornarão o status quo permanente, e não um momento excepcional. Como os gatilhos são insuficientes para que o teto volte a ser cumprido, eles estarão acionados de forma contínua, todos os anos. É possível pensar numa situação em que o governo, numa situação de teto rompido e gatilhos acionados, tente fazer cortes adicionais para tentar chegar ao teto. Mas a análise de Vilma indica que esse objetivo não será alcançado. No cenário com gatilhos, os gastos discricionários já são considerados em um nível mínimo compatível com o funcionamento da máquina pública federal.

Mais complexo é tentar imaginar como, na prática, Executivo, Legislativo e Judiciário se articularão institucionalmente na situação descrita acima. Algumas questões surgirão. Será possível executar um orçamento em que os dispositivos da EC 95 são acionados e o teto é desrespeitado? O governo será obrigado a cortar no orçamento as despesas discricionárias até um nível de colapso do setor público?

Também haverá impasses institucionais nos casos prováveis de que o acionamento de alguns dos gatilhos da EC 95 entre em confronto com outros preceitos constitucionais. Supondo-se, por exemplo, que a nova lei de reajuste do salário mínimo a ser aprovada em 2019 preserve algum tipo de ganho real, este terá de ser repassado ao piso dos benefícios previdenciários, como previsto na Constituição. Com o teto rompido, entretanto, fica proibida “a adoção de medida que implique reajuste de despesa obrigatória acima da variação da inflação”.

Assim, em teoria, não poderia haver repasse da alta real do salário mínimo para o piso previdenciário, mas, por outro lado, há determinação constitucional de que este ocorra. Daí, surge a indagação: o Executivo poderá enviar ao Legislativo um orçamento em que preveja o estouro do teto e as consequentes vedações de despesas, embora ainda contemple gastos discricionários?

Evidentemente, esse e todos os outros prováveis imbróglios institucionais decorrentes do não cumprimento do teto e do consequente acionamento dos dispositivos da EC 95 vão terminar no Supremo Tribunal Federal, que em última distância será o poder decisório a guiar a política fiscal brasileira. Esta é uma situação disfuncional ao extremo, que dificilmente poderia ser vista como um caminho saudável para o Brasil resolver seu imenso problema fiscal.

Assim, é urgente que a EC 95 seja repensada. Como já defendido em Cartas anteriores, não se trata de deixar a política fiscal brasileira sem âncora, mas sim de realizar os ajustes necessários no atual arcabouço institucional para que o imenso desafio das contas públicas seja superado no próximo governo de forma ordeira e inteligente.

*Luiz Guilherme Schymura é doutor em Economia pela FGV EPGE