Moniz Bandeira e a volta da Guerra Fria

Entrevista concedida pelo historiador e cientista polítco Luiz Alberto Vianna Moniz Bandeira a Lejeune Mirhan para a revista Sociologia.

Moniz Bandeira

Esta entrevista foi concedida a mim em especial para a edição nº 55 da Revista Sociologia, da Editora Escala, de abril de 2017. Ela foi feita por e-mail, claro, até porque Moniz vivia na Alemanha. Há alguns anos eu me correspondia com ele de forma amiúde, por correio eletrônico. Nos últimos três anos pelo menos, antes de seu falecimento, falávamos por Skype. Tive a honra de compartilhar momentos especiais com Moniz em seus últimos tempos de vida. Me deu muitos conselhos. Contou-me muitas histórias, uma delas, em especial, que tería sido ele quem falara ao João Amazonas, líder do PCdoB em fevereiro de 1962, quando do afastamento do PCB de Luis Carlos Prestes, que os comunistas sob sua liderança deveriam, ao reorganizar o Partido, mantendo o nome antigo e original, usar uma nova sigla – PCdoB. Moniz foi um intelectual orgânico. Profundamente erudito. Versado em muitas línguas – conforme vocês poderão ver nas citações nesta entrevista. Tive a honra ainda de receber diretamente dele todos os seus últimos livros, que me enviava diretamente pelo Correio para minha casa. Moniz foi um grande patriota. Nos faz muita falta. Uma pena que seus últimos anos de vida tenham sido passados no exterior, pois morava na Alemanha havia 18 anos. É preciso registrar que essa foi a última entrevista pública que Moniz concedeu a algum órgão de imprensa, o que me senti imensamente honrado.

A revista Sociologia existe desde junho de 2006. Passei a ser seu colaborador assíduo de todas as edições a partir do número sete, de janeiro de 2007 (ela era à época mensal e hoje é bimestral). Essa entrevista saiu com 12 páginas. A revista roda com cerca de 80 páginas no total. Foi a maior entrevista que realizei em onze anos de colaboração e a maior concedida por um entrevistado em toda a história da revista. E deu capa também. Isso muito me orgulha muito. Carregarei isso com o orgulho tão grande quanto é grande a tristeza pela falta da convivência com Moniz. Mas, a vida tem que seguir adiante e resta-nos continuar estudando sua obra e aplicando seus conselhos e orientações no cenário internacional.

Publico a seguir, na íntegra, com pequena revisão, a entrevista, incluindo a introdução feita pela editora da revista, a jornalista Jussara Goyano.

Nesta edição de nº 55, entrevistamos um dos intelectuais mais conhecidos do Brasil, respeitado no mundo todo. Trata-se de Luiz Alberto Vianna Moniz Bandeira, que aceitou conceder esta entrevista por correio eletrônico. É importante registrar que ele está indicado para concorrer ao prêmio Nobel de Literatura, por diversas entidades literárias brasileiras.

Formado em Direito, é doutor em Ciência Política, pela Universidade de São Paulo, e professor titular de História da Política Exterior do Brasil no Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB) (aposentado). Recebeu, também, o título de Doutor h.c. das Faculdades Integradas do Brasil – UniBrasil (Paraná) e da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Em 2006, a União Brasileira de Escritores (UBE) o elegeu, por aclamação, intelectual do Ano de 2005, conferindo-lhe o Troféu Juca Pato, por sua obra Formação do Império Americano (Da guerra contra a Espanha à guerra no Iraque), obra também traduzida e publicada na China, em Cuba e na Argentina. Em novembro de 2013, lançou a obra A Segunda Guerra Fria – Geopolítica e dimensão estratégica dos Estados Unidos (Das rebeliões na Eurásia à África do Norte ao Oriente Médio), ambos publicados pela Editora Record.

Moniz foi perseguido durante a ditadura militar, teve de se exilar no Uruguai (1964-1965), de onde regressou ao Brasil e viveu clandestinamente, em São Paulo, até meados de 1967. Esteve preso por cerca dois anos, de novembro de 1969 a outubro de1970, e, depois, em 1973, por ordem do Centro de Informações da Marinha (CENIMAR). Entre 1971 e 1972, pesquisou e escreveu, grande parte na clandestinidade, a obra Presença dos Estados Unidos no Brasil, que foi best-seller em 1973, quando publicado pela Civilização Brasileira, estando Moniz Bandeira ainda preso.

Autor de mais de 20 obras, algumas das quais publicadas na Rússia, Alemanha, Argentina, Chile, Portugal, Cuba e China, Luiz Alberto Moniz Bandeira foi professor visitante nas universidades de Heidelberg, Colônia, Estocolmo, Buenos Aires, Nacional de Córdoba (Argentina) e Técnica de Lisboa, entre outras, além de conferencista em diversas universidades no Brasil e em vários países na América do Sul e na Europa, bem como nos Estados Unidos. É Grande Oficial da Ordem de Rio Branco (Brasil); comendador da Ordem do Mérito Cultural (Brasil); comendador da Ordem de Mayo (Argentina); cavaleiro da Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa (Portugal) e condecorado com a Cruz do Mérito da República Federal da Alemanha, 1ª Classe (Das Verdienstkreuz – 1 Klasse – Das Verdienstorden der Budesrepublik Deutschland).

Professor Moniz Bandeira, muito obrigado por ter aceitado realizar esta entrevista para a nossa revista Sociologia, da Editora Escala. Vamos começar falando sobre o livro pelo qual você recebeu o troféu Juca Pato da União Brasileira de Escritores (UBE) como intelectual do ano, em 2005, que foi A formação do império americano. Fale-nos sobre a atualidade dessa obra, que retrata a ação dos Estados Unidos, desde a guerra contra a Espanha até a ocupação do Iraque em 2003.

A atualidade consiste em que o Império Americano existe, é necessário conhecê-lo e saber como funciona, a fim de impedir que implante uma ditadura global: a full spectrum dominance, objetivo declarado de sua política internacional. Ao redigir Formação do Império Americano, portanto, tratei de fazer, documentadamente, uma análise estrutural, em sua dimensão histórica, do processo que levou os Estados Unidos a se tornarem, em menos de um século, uma superpotência internacional, entendido como o dominium que exerce imperium (poder) sobre as pessoas (no caso, sobre outros Estados), conforme o conceito amplo de Niccolò Machiavelli (1469-1527). O objetivo de Formação do Império Americano foi demonstrar a mutação que – após duas grandes guerras mundiais – ocorreu no sistema econômico e político internacional, a possibilitar a emergência do ultraimperialismo, uma espécie de cartel das potências industriais, imperialistas, sob a hegemonia dos Estados Unidos – que, por meio de um sistema de alianças e de pactos celebrados a partir de 1945, passaram a conduzir a política internacional de conformidade com seus interesses. A exploração de todo o mundo pelo capital financeiro, unido internacionalmente, globalizado, suplantou a luta, entre si, dos capitais financeiros nacionais, a competição que se desdobrava por meio das armas no mercado mundial. As guerras, para o consumo do material bélico, passaram a ocorrer, somente, na periferia do sistema capitalista. E, se não queremos nos submeter à sua dominação, para combatê-lo é necessário conhecê-lo, saber como se formou e funciona. Daí que Formação do Império Americano não constitui uma obra isolada. É parte de um corpus, um conjunto de várias obras em que estudo os Estados Unidos, entre as quais: A Segunda Guerra Fria – Geopolítica e dimensão estratégica dos Estados Unidos (Das rebeliões na Eurásia à África do Norte e ao Oriente Médio); De Martí a Fidel – A Revolução Cubana e a América Latina; Fórmula para o caos – A derrubada de Salvador Allende (1970-1973); e Presença dos Estados Unidos no Brasil.

Parte da intelectualidade, no Brasil e no mundo, tem apresentado certas teses – em especial desde a queda do muro de Berlim –, de que os conceitos de “esquerda e direita” estariam superados; “o proletariado perdeu seu papel” e “os conceitos de imperialismo não se aplicam mais na atualidade”. Qual a sua opinião sobre isso?

A definição depende do momento histórico, das circunstâncias, conforme a realidade em constante mutação. “Nós entramos e não entramos no mesmo rio, nós somos e não somos”, Heráclito ensinou (Fragmento B 12, A 49 e 91). Com efeito, os conceitos têm de evoluir, portanto, com as mutações da realidade que pretendem representar. Não podem ser como uma fotografia, que, apenas, apresenta um determinado momento. O nacionalismo, que na Europa se manifestara sob formas nazifascistas, durante os anos 1920 e 1940, se identificou, na América Latina, com o anti-imperialismo, isto é, contra a hegemonia dos Estados Unidos, e assumiu outras características, diferentes, e, no caso de Cuba, infletiu, cada vez mais, para a esquerda, a ponto de se amoldar ao comunismo, em virtude da contradição entre os dois polos do poder internacional – o conflito Leste-Oeste, deflagrado após a Segunda Guerra Mundial. A União Soviética, naquele período, se afigurou como a única força capaz de se contrapor ao predomínio dos Estados Unidos, uma vez que a vis atractiva da Alemanha nazista, como polo de poder econômico, político e militar, desaparecera com o término da Segunda Guerra Mundial. E Fidel Castro não teve alternativa, se não se alinhar com a União Soviética, de modo que pudesse defender a soberania nacional e as mudanças econômicas e sociais que promovera em Cuba e afetaram os interesses americanos. Como escrevi em meu livro De Martí a Fidel – A Revolução Cubana e a América Latina, o nacionalismo, em diversos países da América Latina, nos anos 1930-1940, se expressou sob a retórica do nazifascismo. Depois, no contexto da Guerra Fria, se identificou de um modo ou de outro com a esquerda e o comunismo. Esse fenômeno demonstrou a necessidade de se reavaliar os conceitos de esquerda ou direita, dado que tais tendências ideológicas importadas da Europa se miscigenaram e se modificaram, não apenas no seu conteúdo, mas, também, até mesmo nos objetivos a que se propuseram, ao expressar, concretamente, outras condições econômicas, sociais e políticas. Qual direita e qual esquerda havia na Bolívia entre 1943 e 1945? Era o governo do coronel Gualberto Villarroel – que, quando acusado pelos Estados Unidos de servir aos propósitos da Alemanha nazista, iniciou as reformas sociais, incorporando os índios à política nacional – ou o Partido de la Izquierda Revolucionaria (PIR), de orientação stalinista, que participou do movimento para derrubá-lo, juntamente com a oligarquia da Bolívia? Qual esquerda havia na Argentina em 1945 e nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial? Perón – apoiado nos sindicatos e com sua retórica modelada pelo fascismo – ou o Partido Comunista, que se alinhara com Spruille Braden, embaixador dos Estados Unidos, e à oligarquia argentina para combater Perón? Qual esquerda havia em Cuba? Fidel Castro ou o PSP (Partido Comunista) que, no início dos anos 1940, participara do governo do sargento Fulgêncio Batista e se opusera às guerrilhas até julho de 1958? Tais exemplos evidenciam que as contradições da América Latina com os Estados Unidos levaram o nacionalismo – que na Europa constituiu expressão política da direita – a se manifestar, em países daquela região, como força de esquerda, mesmo quando usava a retórica do nazifascismo. E, como o grande historiador Eric Hobsbawm declarou, em entrevista à Agência de Notícias Telam, da Argentina, atualmente, “já não existe esquerda tal como era”, seja socialdemocrata ou comunista. Ou ela está fragmentada ou desapareceu. Não há contraste, não há, virtualmente, oposição. As diferenças consistem, somente, no matiz dos partidos. Na realidade, todo o sistema partidário está esclerosado. As condições históricas, das quais essas diferenças emergiram nos séculos XIX e XX, estão em processo de mutação, devido às condições sociais geradas pelo desenvolvimento das forças produtivas. As classes sociais continuam a existir, as lutas prosseguem, porém suas características não são mais iguais às dos tempos de Marx e Engels ou de antes da Segunda Guerra Mundial. As grandes corporações, buscando condições de investimentos mais seguras, estáveis e lucrativas, instalaram suas plantas industriais nos países da periferia do sistema capitalista e passaram a exportar a produção para os mercados das próprias potências econômicas, das quais haviam emigrado. O setor terciário superou a indústria nas potências da Europa e dos Estados Unidos. A produção industrial da Europa e dos Estados Unidos se processa, em grande medida, offshore, em países onde a força de trabalho é muito mais barata. A automação da indústria, com a crescente utilização de microchips (robôs industriais), concorreu, também, para aumentar, mais e mais, os índices de desemprego, o que, ao criar inumerável exército industrial de reserva, debilitou o poder de negociação dos sindicatos, cuja articulação política – restrita aos limites de seus respectivos Estados nacionais – não acompanhou o desenvolvimento da organização transnacional capitalista. As grandes corporações, com subsidiárias nos novos países industrializados e emergentes, com níveis salariais mais baixos e diferentes condições sociais e políticas, podem, assim, minimizar os efeitos de qualquer paralisação do trabalho e resistir às pressões da classe operária, nos seus respectivos países. A organização dos trabalhadores está, virtualmente, restrita aos limites do Estado nacional, o que obstaculiza o êxito da coordenação de uma greve geral internacional, com o objetivo de paralisar, simultaneamente, todas as unidades de produção da mesma empresa espalhadas por diversos continentes. A grande massa trabalhadora, que produz maior excedente econômico, se encontra nos países da Ásia, para onde as grandes corporações transferiram suas plantas industriais e onde fabricam a maior parte dos produtos que os mercados da Europa e dos Estados Unidos consomem. E o processo de concentração do capital, mediante a fusão de empresas, recresce cada vez mais, enquanto a desigualdade, ao nível mundial, se torna, dia a dia, infinitamente maior, tal como Karl Marx previu.

Com o fim da 1ª guerra contra o Iraque, em janeiro de 1991, e no final desse mesmo ano, a União Soviética desapareceu. Uma nova ordem mundial surgiu no mundo, como se apenas um país fosse o xerife do planeta – no caso, os Estados Unidos. Tivemos outras emergências de novas ordens, como a que surgiu com o tratado de Versailles, em 1815 que redefiniu as fronteiras da Europa; como a conferência de San Remo, em 1920, que redefiniu a Europa após a 1ª Guerra Mundial; de Sykes-Picot, que dividiu o Oriente Médio; e a de Bretton Woods, em 1944, que impôs o dólar como moeda de comércio. Essa “nova ordem”, que emergiu de 1991, chegou ao fim?

No discurso que pronunciei, quando recebi o Troféu Juca Pato, eleito pela UBE como Intelectual do Ano 2005, adverti que sinais muito parecidos aos que marcaram o declínio e a queda do Império Romano – descritos por Edward Gibbon – já se manifestavam e se acentuavam nos Estados Unidos, pois, sem um estado de guerra permanente, sua economia deixaria de funcionar. A paz era e é contrária aos seus interesses. E assim aconteceu com o Império Romano, cuja economia, na forma que finalmente alcançou, se baseava na guerra. O Império Americano, militarista, necessita, também, de guerras para manter sua economia em funcionamento, reduzir o número de desempregados, subsidiando a indústria bélica e toda a sua cadeia produtiva, por meio das encomendas do Pentágono e outras agências do governo. De acordo com os dados do Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI), divulgados em 2014, as vendas de armamentos pelas companhias dos Estados Unidos representam 58% das vendas das 100 maiores companhias, das quais 30, responsáveis por 28%, estão sediadas na Europa Ocidental. Desde o fim de Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos, até 2001, empreenderam 201 operações militares em outros países, e, a partir da administração do presidente George W. Bush – ademais das guerras no Afeganistão e no Iraque –, o número recresceu. Conforme mostrou o Barômetro de Conflitos (Konfliktbarometer), divulgado pelo Instituto de Pesquisa Internacional de Conflitos de Heidelberg (Heidelberger Institut für Internationale Konfliktforschung, HIIK), órgão do Instituto de Ciência Política da Universidade de Heidelberg, em apenas um ano, 2011, o número de guerras e conflitos no mundo triplicou e foi o mais alto desde 1945: saltou de seis guerras e 161 conflitos armados, em 2010, para 20 guerras e 166 conflitos, em 2011, tendo como cenário, sobretudo, o Oriente Médio, a África e o Cáucaso. Em 2010, os comandos da Special Operations Command (SOCOM – Comandos de Operações Especiais) combatiam em 75 países – número este que subiu para 120 em 2011, segundo o coronel Tim Nye, e recresceu para 134, em 2013, de acordo com o major Matthew Robert Bockholt. Segundo o Konfliktbarometer, citado acima, havia, no fim de 2013, 414 conflitos em todas as regiões, como a África, Ásia, Oriente Médio e América Latina (Colômbia). O número dos conflitos aumentou, certamente ainda mais, devido às crises na Ucrânia, Líbia e outros países. E o recrudescimento da participação dos Estados Unidos em conflitos e guerras em outros países, ao longo do planeta, ocorreu durante a administração do Prêmio Nobel da Paz ao presidente Barack Obama. Ele implementou e fomentou as guerras civis e convencionais, acompanhadas pela campanha de drones, com assassinatos via aérea, efetuados pela CIA, ademais da subversão a cargo da diplomacia pública, pela NED [Doação Nacional para a Democracia] e a USAID [Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional], e da extensiva espionagem eletrônica da National Security Agency [Agência de Segurança Nacional]. Nenhuma das intervenções militares e a all-out shadow war (ofensiva guerra na sombra), realizadas pelos Estados Unidos, visaram, realmente, defender sua população de reais ameaças externas. E agora – metade de 2014 –, o presidente Barack Obama continua a provocar a Rússia, sem atentar, com a sua arrogância, para o fato de que uma guerra entre os dois países não será um jogo de soma zero. Não haverá vencidos nem vencedores. A OTAN/NATO [Organização do Tratado do Atlântico Norte/North Atlantic Treaty Organization] pode constituir a maior força militar do mundo. Porém, ainda que seja destruída, a Rússia tem um potencial atômico que pode devastar os Estados Unidos e seus aliados da Europa. O potencial bélico entre os Estados Unidos e a Rússia, de certa forma, se equipara. De acordo com a New START (Strategic Arms Reduction Treaty), os Estados Unidos possuem 1.585 ogivas nucleares estratégicas empregadas em 778 ICBMs, SLBMs e bombardeiros estratégicos, enquanto a Rússia dispõe, aproximadamente, de 1.512 ogivas nucleares em 498 ICBMs, SLBMs e bombardeiros estratégicos.

Tenho estudado, há algumas décadas, a realidade do mundo árabe. De fato, o imperialismo dividiu o povo e a nação árabe em 22 países formalmente constituídos (além da Palestina, que não consta dos mapas, e hoje se chama Israel e Sarauí, ocupado pelo Marrocos). Não há governo algum dos Estados Unidos, desde 1945, cuja essência da sua política externa não seja a de proteger e dar segurança a Israel, em detrimento do povo árabe-palestino. Qual a sua visão desse conflito entre árabes e israelenses? Enxerga alguma luz no final do túnel?

Em curto e médio prazos, não vejo nenhuma luz. Nem sei se haverá luz mais adiante. A Autoridade Palestina e o Hamas se uniram e formaram um governo de coalizão. É um acontecimento muito positivo. Mas Israel não o aceita e o Congresso dos Estados Unidos, onde o lobby sionista poderosamente influi, pretende sabotá-lo. É difícil uma solução. E daí o violento ataque de Israel à Faixa de Gaza, após o assassinato de três adolescentes israelenses e um palestino. Em uma semana de bombardeio já mataram mais de cem palestinos. Após a Primeira Guerra Mundial, o Supremo Conselho dos Aliados decidiu desmembrar a Mesopotâmia do Império Otomano e endossou a Declaração de Balfour, na Conferência de San Remo (24 de abril de 1920). A população árabe na Palestina, àquele tempo, era calculada em cerca 568.000 e superava, majoritariamente, o total de cristãos (74.000) e judeus (58.000). O capitão Thomas E. Lawrence (Lawrence da Arábia), que levantara os povos árabes contra o domínio do Império Otomano, previu um conflito sem fim na Palestina. Advertiu que os camponeses árabes não se dispunham a ceder suas terras aos colonos judeus e essa iniciativa haveria de gerar uma situação em que “a influência judaica nas finanças da Europa podia não ser suficiente para dissuadir os árabes de se recusarem a abandoná-las – ou pior!”. Em 1948, o Estado de Israel foi criado e os camponeses, que constituíam cerca de dois terços dos habitantes da Palestina, perderam suas terras. Dentro do governo dos Estados Unidos, porém, a maioria do Departamento de Estado era contra a partição da Palestina. O general George Marshal (1880-1959), então secretário de Estado do presidente Harry S. Truman (1945-1953), se opôs à criação do Estado de Israel, porque entendia que se devia criar, apenas, um só Estado, com eleições gerais, e escreveu às Nações Unidas, em 17 de setembro de 1947, que os Estados Unidos estavam “relutantes a endossar a partição da Palestina”. O embaixador George F. Kennan, que elaborou a doutrina de containment da União Soviética, escreveu um memorandum interno, no qual ponderou que “apoiar os extremos objetivos da extrema política sionista” seria “em detrimento da segurança total dos Estados Unidos” e abriria maiores oportunidades para a União Soviética.

Ainda sobre o mundo árabe, desde janeiro de 2011, estamos presenciando diversos conflitos naquela região. Governos ditatoriais, como os de Egito e Tunísia, caíram por força dos movimentos populares. No entanto, os governos que emergiram não são progressistas e vários deles tentaram implantar um modelo parecido com o da Turquia, de Erdogan, de islamização moderada da sociedade. A imprensa, que gosta de “batizar” eventos, vem chamando esse movimento de “primavera árabe”. Muitos líderes árabes, com quem tive contato, preferem chamá-lo de “inverno”. Qual a sua visão desse processo, em especial no Egito?

No meu livro A Segunda Guerra Fria – Geopolítica e dimensões estratégicas dos Estados Unidos (Das rebeliões na Eurásia à África do Norte e ao Oriente Médio) mostro, documentadamente, que, não obstante a existência de condições objetivas e subjetivas para as sublevações que ocorreram nos países árabes, os Estados Unidos – à frente de seus sócios da União Europeia – armaram uma equação, com ampla dimensão econômica, geopolítica e estratégica. Havia método nas manifestações tanto no Oriente Médio quanto no Maghreb, sobretudo por trás das sublevações na Líbia e na Síria, iniciadas em 2011. Porém, a cold revolutionary war (guerra fria revolucionária), em que as mobilizações, dentro da legalidade, ainda se mantiveram a fim de capitalizar a opinião pública internacional, evoluiu pouco depois para a hot revolutionary war, quando passaram para ações violentas contra o governo da Líbia e da Síria, com apoio dos Estados Unidos e de seus súditos na OTAN, com forte colaboração de Qatar, Arábia Saudita e outros emirados do Golfo Árabe, bem como da Turquia e, mais veladamente, de Israel. No caso do Egito, cerca de 90 mil ativistas egípcios haviam se mobilizado, por meio do Facebook e do Twitter, para o Dia da Fúria – levante contra o governo autocrático de Hosni Mubarak, a corrupção, a repressão, a pobreza, o desemprego e as condições sociais existentes no Egito. Condições objetivas e subjetivas realmente existiam, mas ativistas treinados acenderam o estopim. Após 18 dias de demonstrações de massa, em 11 de fevereiro, Hosni Mubarak teve de renunciar e entregar o poder aos militares. O mesmo aconteceu na Ucrânia, em fevereiro de 2014. Após ininterruptas manifestações de protestos, por não haver assinado o tratado de associação com a União Europeia, o presidente Viktor Yanukovych foi derrubado por um golpe, via parlamentar, encorajado por Washington. As demonstrações foram promovidas pelos partidos neonazistas – Setor de Direita e Slovoboda – em aliança com ONGs, financiadas pelos Estados Unidos, por meio da USAID, NED e CIA, bem como de fundações alemãs. As ONGs – entre outras, Open Society Foundations, OSF [Fundações Open Society – Sociedade Aberta, Vidrodzhenya – Reviver, Freedom House, Poland-America-Ukraine Cooperation Initiative] são as mesmas que promoveram a denominada Revolução Laranja e derrubaram o governo de Leonid Kuchma (1994-2005). Essas e outras organizações não governamentais foram criadas para promover a política de troca de regime sem golpe militar. Dois senadores americanos – John McCain (Partido Republicano) e Christopher Murphy (Partido Democrata) – participaram, abertamente, das manifestações na Praça Maidan.

Estive, no final de novembro e início de dezembro de 2013, em visita à Síria e ao Líbano. Travamos contatos com autoridades e organizações populares da República Árabe da Síria e com o Hezbollah, no Líbano, além de termos visitado os famosos acampamentos de Sabra e Shatila, onde ocorreu o massacre de 1982. Temos visto como a Síria, um dos mais antigos países da humanidade, vem sendo agredida, externamente, por mercenários terroristas financiados por países árabes do Golfo Pérsico-Arábico e pelo imperialismo estadunidense, francês e inglês. Qual sua visão desse conflito na Síria? Bashar sairá vencedor dessa batalha?

O presidente Bashar al-Assad venceu, legitimamente, as eleições realizadas no início de junho de 2014. Esse fato deve mudar a equação política na Síria e no Oriente Médio. Embora o presidente Barack Obama, como se fosse o ditador do mundo, ordenasse que Assad “must go” (“deve sair”), as autoridades, em Washington, parecem convencidas de que Assad não irá a parte alguma e manterá o poder. Conta com o apoio da Rússia, do Irã e das milícias do Hezbollah. A política de Obama se mostrou inconsequente, fundada em mentiras, sobretudo depois de acusar Assad de cruzar a “red line” (“linha vermelha”), por usar armas químicas – sem qualquer comprovação –, e pretender bombardear a Síria, o que a Rússia, diplomaticamente, evitou, salvando os Estados Unidos de outro desastre. Mas Obama não desistiu. Continua a enviar armamentos para os terroristas do Jabhat al-Nusra, da Frente Islâmica e de outros grupos jihadistas, por meio da Arábia Saudita e de outros países do Golfo Árabe.

Em seu último livro – excepcional, diga-se de passagem – você trata do surgimento de uma “nova guerra fria”. Um conceituado jornalista, que escreve para vários órgãos midiáticos no mundo, usou uma frase assim: a guerra fria voltou! Ainda bem! Como quem diz: um novo equilíbrio de forças no mundo seria bem-vindo para conter a agressão e a força dos Estados Unidos. Você estaria de acordo com isso? Veremos em breve um mundo multipolar?

Uma segunda guerra fria podia ser prevista contra a Rússia, desde que a União Soviética se esbarrondou. Os Estados Unidos não somente não aboliram a OTAN, após o Pacto de Varsóvia, como trataram de robustecê-la e estender seu raio de ação às fronteiras da Rússia. A Guerra Fria não consistia, tão somente, na corrida armamentista, mas se processava e continua a se processar por meio de guerras assimétricas e de baixa intensidade (low intensity), uma vez que o desenvolvimento tecnológico e o equilíbrio nuclear afastam a possibilidade de uma guerra direta entre Estados. Os Estados Unidos e as potências da União Europeia estão, no entanto, mal equipadas para as guerras assimétricas, mas os inimigos, como Talibãs e outros, usam armamentos de low-technology, tanto que as tropas da OTAN não conseguiram vencer os insurgentes no Afeganistão e no Iraque. O objetivo estratégico dos Estados Unidos sempre foi se constituírem como permanent unilateral superpower (superpotência permanente unilateral), capturarem o controle de toda a Eurásia (Europa e Ásia) e encontrarem os meios para integrate the ‘new democracies’ of the former Soviet bloc into the US – led system (integrar as ‘novas democracias’ do ex-bloco soviético nos EUA – sistema eletrônico de defesa terrestre). A OTAN não é, apenas, um instrumento militar. É, também, um instrumento econômico e foi criada não somente para conter a União Soviética, mas, também, submeter a Alemanha. Entre 1994 e 1997, os Estados Unidos ampliaram o raio de cooperação da OTAN com os demais membros, firmando acordos como Parceria pela Paz, Diálogo Mediterrâneo e o Conselho de Parceria Euro-Atlântico. Em 1998, foi criado o Conselho Conjunto Permanente OTAN-Rússia. Em 1997, violando os compromissos assumidos pelo ex-presidente George H. W. Bush e por Gorbatchev, a OTAN incorporou, em 1999, a Polônia, a Hungria e a República Tcheca – três países antes integrantes do Pacto de Varsóvia – e estendeu seu domínio sobre mais sete, no nordeste e no leste da Europa: Estônia, Letônia, Lituânia, Eslovênia, Eslováquia, Bulgária e Romênia. Assim, por meio da OTAN, os Estados Unidos trataram de consolidar a hegemonia mundial, como lonely power (única potência), a anchor of global security (âncora de segurança global), a reafirmar o American exceptionalism, o mito de que sempre desempenharam um papel em favor da humanidade. Desse mantra se valeram muitos dos seus líderes, entre os quais o presidente Barack Obama, como proclamou quando pretendeu bombardear a Síria em 2013. Em 1992, o general Colin Powell, como chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas, recomendou ao governo do presidente George H. W. Bush (1989-1993), no documento The Military Strategy of the United States – 1991-1992 (A Estratégia Militar dos Estados Unidos – 1991- 1992), a preservação da credible capability to forestall any potential adversary from competing militarily (capacidade admissível a fim de evitar qualquer potencial adversário de competir militarmente) com os Estados Unidos, impedindo a União Europeia de se tornar uma potência militar, fora da OTAN; a remilitarização do Japão e da Rússia; e o desencorajamento de qualquer desafio à sua preponderância ou tentativa de reverter a ordem econômica e política internacionalmente estabelecida. E designou para as Forças Armadas latino-americanas, como novas missões, apenas as tarefas de polícia, como combater o narcotráfico, prevenção de desastres etc. Na mesma época – 1992 –, Dick Cheney, secretário de Defesa do presidente George H. W. Bush, ratificou que a primeira missão política e militar dos Estados Unidos pós-Guerra Fria consistia em impedir o surgimento de algum poder rival na Europa, na Ásia e na extinta União Soviética, e atribuir à OTAN o monopólio da violência internacional, a fim de implementar o Project for the New American Century (Projeto para o Novo Século Americano) e a full spectrum dominance, isto é, a consolidação e ampliação da hegemonia planetária dos Estados Unidos como a única potência, verdadeiramente, soberana sobre a Terra. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos tratavam de derrogar, unilateralmente ou por meio da ONU, com o apoio da União Europeia, o princípio democrático da igualdade de todas as nações, sob o pretexto de intervenção humanitária, responsabilidade de proteger (RtoP e R2P). Essa estratégia inseriu os Estados Unidos em um perpetual wartime footing (eterno pé de guerra), uma forever war (guerra eterna), a qual o presidente Barack Obama deu continuidade com Unmaned Aerial Vehicles (UAVs), drones, cujos alvos, escolhidos por ele próprio, constam de uma kill list. Isso levou o general Brent Scowcroft, ex-chefe do Foreign Intelligence Advisory Board [Conselho Consultivo de Inteligência Externa] (2001-2005), a comentar que “there is something very troubling about how we have become policeman, judge, jury, and executioner, all rolled up together” (“há algo muito preocupante sobre a forma como nós temos nos tornado policiais, juízes, júris e carrascos, todos da mesma laia”). O presidente Barack Obama endossou o mesmo objetivo dos neocons (neoconservadores), extrema-direita do Partido Republicano, de instauração da full spectrum dominance, tal como explicitado na Joint Vision 2010 e ratificado pela Joint Vision 2020, do Estado Maior-Conjunto, sob a chefia do general de exército Henry Shelton. A full spectrum dominance, que significa estabelecer a ditadura global dos Estados Unidos, de consolidar o Império Americano, do qual os governantes da União Europeia, enquadrados na OTAN, só podem desempenhar o papel de pró-cônsules.

Queremos concluir esta entrevista de política internacional abordando a crise na Ucrânia. Ainda que a mídia internacional publique apenas a versão estadunidense do que lá ocorre, está claro que o governo anterior, democrático e patriótico, desse país caiu por ele ser contrário a uma capitulação aos europeus e ao afastamento da Rússia, que afetaria o equilíbrio de forças na região da Ásia. Um governo fantoche foi entronado em Kiev, completamente a serviço dos EUA e da Europa. Esse processo é parte disso que você chama de “nova guerra fria”? Que perspectiva e desdobramento você vê para o conflito?

É muito possível que se alcance algum acordo, dado que a Alemanha e a França não estão dispostas a fomentar uma guerra fria com a Rússia, o que daria à Europa enorme prejuízo econômico e político. Outrossim, o primeiro-ministro da Ucrânia, Arseniy Yatsenyuk, reconheceu, em entrevista ao First National TV Channel, no dia 5 de junho, que seu país não podia prescindir de usar o gás da Rússia e que iria necessitar de um adicional de 7 bilhões de metros cúbicos para enfrentar o próximo inverno. “I would like our relations with Russia to be normalized” (“gostaria que nossas relações com a Rússia fossem normalizadas”) – acrescentou. Contudo, creio que qualquer entendimento é complicado e demorado. O presidente Vladimir Putin, o maior estadista da atualidade, está jogando com a diplomacia. Sabe, perfeitamente, que os governantes da Grã-Bretanha e da França se portam como pró-cônsules do Império Americano e só à Alemanha resta um sentido de soberania. Por isso, trata de evitar um confronto com a Rússia e resiste a aumentar o peso militar da OTAN, como os Estados Unidos querem. O presidente Vladimir Putin, por sua vez, também evita dar pretexto para que a Alemanha se afaste da Rússia. Não aceita as provocações do presidente Barack Obama e resiste às pressões domésticas dos ultranacionalistas na Rússia para que intervenha, militarmente, na Ucrânia, em favor dos insurgentes em Dombass, nas cidades de Slaviansk, Kramatorsk, Donetsk e outras. A Rússia cortou o gás que fornece à Ucrânia e Kiev está usando as reservas que tem. Porém, elas duram apena, até outubro e aí o problema começa, afetando, inclusive, a União Europeia. E as duras exigências do FMI, para o empréstimo que promete fazer e não dá para cobrir suas dívidas, vão contribuir, decisivamente, para o desgaste do regime de inspiração nazifascista, lá instaurado sob os auspícios dos Estados Unidos e da União Europeia. E, queiram ou não, os neo-nazifascistas de Kiev, instrumentalizados pelos neoconservadores que dominam o governo de Barack Obama, terão de ceder mais cedo ou mais tarde. Não obstante a submissão às diretrizes dos Estados Unidos, ameaçando a Rússia com mais sanções, esta não quer uma guerra por causa da Ucrânia, e os Estados Unidos, outrossim, não tem meios para lá intervir, militarmente, em favor dos neonazistas de Kiev. Um confronto militar entre a Rússia e os Estados Unidos poderia provocar uma hecatombe mundial, o Armagedon. A estratégia do presidente Vladimir Putin tem como base o tempo. A Ucrânia não depende, apenas, do gás que a Rússia lhe fornece. É um dos grandes exportadores mundiais de material bélico e depende, fundamentalmente, do mercado da Rússia. A União Europeia não tem condições de substituí-lo. Suas empresas de armamentos estão com problemas, em decorrência da crise que afeta toda a economia da União Europeia, e os Estados tiveram de reduzir o orçamento militar. Elas buscam mercados em outras regiões para colocar sua produção. A corporação estatal Ukroboronprom, responsável pela produção de material bélico da Ucrânia, tem sob seu controle 134 indústrias de defesa e, em 2013, firmou com a Aviaexport, da Rússia, um tratado de cooperação, visando o desenvolvimento conjunto de helicópteros e aeronaves, para novos mercados. Sua produção é de equipamentos de radar, mísseis de defesa aérea, canhões de artilharia e sistemas de produção de tanques blindados e um moderno sistema acústico de localizar a procedência de tiros e a posição de snipers e artilharia. E destina mais de 45% do total de suas exportações ao mercado da Comunidade de Estados Independentes, formada por antigas repúblicas da União Soviética, entre as quais Rússia, Belarus, Kazakhstão, Kyrgyzstão, Tajikistão, que firmaram o tratado de criação da União Econômica Eurasiana. Para a Rússia, à qual sempre esteve umbilicalmente ligada, a Ucrânia exportou, em 2013, um montante de US$1,2 bilhão (€860 milhões). E a maior parte das instalações e fábricas que integram a Ukroboronprom está sediada no sudeste da Ucrânia, na província de Donetsk (Donetsk Oblast), com 4,5 milhões de habitantes, dos quais quase a metade de origem russa. A insurgência contra o governo de Kiev ocorre, exatamente, nessa região, que grande parte dos habitantes deseja tornar uma república autônoma, a Novorossia. E, sem essa região – sudeste e leste da Ucrânia –, o regime de Kiev perderá a grande fonte de receita de exportações. O ocidente do país é uma região, predominantemente, agrícola e atrasada. A Ucrânia e a Rússia, por diversos fatores, são interdependentes. O presidente Barack Obama, porém, parece que não pretende suspender a guerra fria contra a Rússia e a China. Porta-se como um warmonger (instigador de guerra), mais perigoso do que o próprio presidente George W. Bush, devido, quiçá, aos seus complexos pessoais e políticos. Os Estados Unidos, desde o colapso da União Soviética, tiveram como objetivo estratégico forçar a expulsão das bases navais da Rússia no Mediterrâneo (Tartus e Latakia, na Síria) e no Mar Negro (Sebastopol, na Crimeia). Contudo, não conseguiu. A Rússia opera o porto de Tartus, na Síria, desde 1971, e planejava reformá-lo e ampliá-lo, como base naval desde 2012, de modo que pudesse receber grandes navios de guerra e garantir sua presença no Mediterrâneo. Mas o presidente George W. Bush estava financiando a oposição, desde pelo menos, documentadamente, 2005, visando desestabilizar e derrubar o regime de Bashar al-Assad e impedir o aprofundamento, no âmbito naval, de suas relações com a Rússia. A fim de controlar o Mediterrâneo, porém, se tornava necessário, igualmente, se assenhorear da base naval de Sebastopol, que a Rússia mantém na Crimeia desde o reinado de Catarina, a Grande, no século XIII. Washington manifestou, abertamente, o objetivo de dominar todo o Mediterrâneo, ao firmar, com Madri, um acordo, anunciado em 5 de outubro de 2011, pelo qual a base naval de Rota (Cádiz), na Espanha, deveria albergar quatro destróieres, equipados com antimísseis (BMD), da Marinha dos Estados Unidos, e operados por 1.100 militares e 100 civis, como um sistema de defesa da OTAN, a pretexto de prevenir ataques de mísseis balísticos do Irã e da Coreia do Norte, o qual seria acompanhado por outros sistemas na Romênia, Polônia e Turquia. E assim a história não tem fim, porque não é passado. É o presente, que flui como o rio, e, a cada instante, é e não é o mesmo no qual vivemos.

*Lejeune Mirhan é sociólogo, escritor, professor universitário e analista internacional. Fez o curso de mestrado em Filosofia pela PUCC e especialização em Política Internacional pela ESP. Lecionou Sociologia, Ciência Política e Métodos e Técnicas de Pesquisa, na Universidade Metodista de Piracicaba, de 1986 até 2006. É autor de nove livros nas áreas de Sociologia e de Política Internacional. Presidiu o Sindicato dos Sociólogos do Estado de São Paulo (2007-2010) e a Federação Nacional dos Sociólogos (1996-2002). Como estudioso, pesquisador e sindicalista visitou 20 países, em especial Palestina, Síria, Líbano, Jordânia, Emirados Árabes Unidos e Turquia.