Descaso em pente-fino pode tirar beneficiários legais do Bolsa Família

É consenso entre os especialistas consultados pelo Portal Vermelho que as verificações de irregularidades nos programas sociais devem ser feitas. Todavia, os rigorosos critérios adotados pelo governo Michel Temer no pente-fino do Bolsa Família podem excluir pessoas que precisam e têm direito a receberem o benefício, o que levaria a outra preocupação: a possibilidade de que os pente-finos agravem a pobreza no país.

Por Verônica Lugarini

Bolsa família

De acordo com informações divulgadas pela Folha de S.Paulo nesta semana, o governo retirou o benefício do Bolsa Família de 5,2 milhões de brasileiros após verificar pagamentos irregulares entre o segundo semestre 2016 e maio deste ano. Também foram cancelados 478 mil de auxílios-doença e aposentadoria por invalidez, totalizando 5,7 milhões de benefícios cancelados. A apuração destes gastos irregulares ficou a cargo do Cmap (Comitê de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas) que informou uma redução de R$ 10 bilhões nesses programas após os cortes.

Em conversa com o Portal Vermelho, o professor de economia da PUC-SP, Marcel Guedes Leite, disse que essas checagens de irregularidades devem ser feitas frequentemente e são mais intensas no Bolsa Família por ser mais o programa simples na hora da apuração, já que no caso do auxílio-doença e aposentadoria por invalidez é necessária a realização de uma perícia médica para retirada do benefício.

“O Bolsa Família tem controle mais forte, mas o pente-fino acontece devido à falta de controle do governo. Do jeito que é colocado, parece que as pessoas estavam fazendo algo errado, contra o sistema, mas o sistema é que não estava sendo bem desenvolvido”, explicou o professor.

O programa mais afetado por esse corte é reconhecido internacionalmente por seus impactos positivos. Criado em 2004, o programa foi responsável por retirar o Brasil do Mapa da Fome da ONU em 2014 e por reduzir a desigualdade social: entre 2001 e 2008, 13% da queda na desigualdade de renda.

Essa última leva de cancelamentos, quando 5,2 milhões famílias foram retiradas do programa, superam a população do Uruguai (3,5 milhões), por exemplo.

Apesar de especialistas apontarem essas revisões como necessárias, há uma nuance que precisa ser considerada diante do atual contexto econômico e social do Brasil: a forma como o governo vêm realizando esse pente-fino no Bolsa Família.

O critério adotado pode ser rigoroso demais a ponto de excluir beneficiários que ainda estariam enquadrados nas regras do benefício social. O que preocupa economistas diante do cenário brasileiro: aumento de 11,2% da pobreza extrema entre 2016 e 2017, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua) do IBGE; da volta da mortalidade infantil após 26 anos de queda (crescimento de 11% entre 2015 e 2016) e a possibilidade do Brasil voltar ao Mapa da Fome.

“Eu acho bastante surpreendente que tenham sido cortados mais de 5 milhões de pessoas do Bolsa Família por conta de irregularidades, pois o programa é o mais bem focalizado e administrado com comprovação de estudos do Banco Mundial e das Nações Unidas para o Desenvolvimento”, disse Paulo Jannuzzi, professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE e ex-Secretário de Avaliação do Ministério de Desenvolvimento Social (MDS).

Para Jannuzzi, boa parte dos benefícios podem ter sido cancelados de forma equivocada. Na mesma linha, o professor de economia da Unicamp, Guiherme Mello, afirmou que essa “é uma escolha política que o governo tentará travestir com o lema da moralidade”.

“A revisão dos benefícios sociais deve ser feita de tempos em tempos, mas essa questão é bastante difícil e complexa. Porque com esse número [de cancelamentos] dá a entender que há um excesso de rigor por parte do governo exatamente para não aumentar o investimento no Bolsa Família. Com isso, ele justifica essa ação com um argumento moralista sobre a pessoa que não merece receber quando, na verdade, o aumento da pobreza e da miséria mostram que há cada vez mais pessoas que precisam desse benefício”, explicou o professor da Unicamp.

Questionado sobre os possíveis equívocos que desconsideram a sazonalidade dos trabalhos informais (o pente-fino analisa a renda do momento da apuração dos dados), Marcel Guedes afirmou que uma das formas de se reverter essa situação seria fazer uma média dos rendimentos anuais.

“O pente-fino do Bolsa Família deveria considerar uma renda média auferida no período de um ou dois anos para evitar justamente a sazonalidade. Eu posso conseguir um trabalho remunerado agora, mas que depois irei ficar meses sem receber. Com isso, o rendimento médio nesse período teria sido inferior ao exigido pelos critérios do programa, permitindo que receba o benefício”, disse Guedes.

Analisando o contexto social e econômico, Guilherme Mello afirmou que o governo segue na contramão do que seria necessário para mudar o cenário do país. Para ele, nesse momento, programas como o Bolsa Família deveriam ser ampliados.

Hoje, o valor do benefício do Bolsa Família é de R$ 48,00 por mês e cada família pode acumular até dois benefícios, ou seja, R$ 96,00. Enquanto isso, a cesta básica mais barata no país é a de Salvador que custa R$ 333,00.

“Precisamos ter claro o momento que o país vive. A única forma de sair disso é aumentar a renda das pessoas e o Bolsa Família tem comprovadamente um impacto não só sobre a renda e emprego, mas em também em pequenas cidades do Brasil”, falou Guilherme Mello.

Além do Bolsa Família manter 21% dos brasileiros fora da extrema pobreza, ele movimenta a economia local, conforme relatou Mello. O benefício do Bolsa Família significa renda e, portanto, dinheiro circulando. Embora o valor seja pequeno, ele tem impacto na dinâmica cotidiana das pessoas porque com esse valor que as famílias fazem suas compras e, consequentemente, mantém os comércios familiares de pequenas cidades abertos.

Ou seja, o Bolsa Família injeta dinheiro e garante a movimentação da economia local e isso acontece principalmente nas cidades do norte e nordeste do Brasil, onde mais de 1/3 da população vivem dos benefícios do programa nos 11 estados dessas regiões.

“Quantos benefícios fiscais concedidos a grandes empresas não são eficazes e não se justificam sob nenhum critério e mesmo assim, são mantidos? O que precisamos entender é que em um país como o Brasil onde está voltando a pobreza, está voltando a fome, e está voltando a miséria, o ideal é você conseguir ampliar a cobertura. Se você adotar uma política totalmente rigorosa em relação ao acesso aos benefícios, você pode estar ampliando esses dados trágicos no país no longo e até no curto prazo. O ideal seria você aumentara cobertura social e não reduzir os benefícios nesse momento de grave crise social”, finalizou o professor da Unicamp.