As mistificações do Banco Central

Há um deslocamento da demanda por financiamento das empresas do mercado bancário para o financiamento direto, por razões de custo.

Por Ricardo Carneiro

PEC autoriza Banco Central a comprar títulos privados

Comprometida com uma visão ultraliberal da economia, postura compartilhada por parte dos seus técnicos, a atual administração do Banco Central (BC), no afã de provar a correção das teses afeitas a esta visão, às vezes exagera e mistifica.

É o que se vê, por exemplo, nas análises do financiamento da economia brasileira que têm sido divulgadas no âmbito dos Relatórios de Inflação. A versão mais recente desta postura é o box denominado “Financiamento amplo das empresas”, do Relatório de junho de 2018.

Nele, o BC postula, mas não demonstra, que o recente encolhimento do crédito bancário, sobretudo do dirigido, particularmente o do BNDES, foi atenuado, pois houve uma substituição de fontes de financiamento para as empresas, com destaque para o mercado de capitais.

Os números, em princípio parecem significativos. Trabalhando com dois grupos distintos: o primeiro, um grupo restrito de grandes empresas, com endividamento igual ou superior a 50 milhões de reais no BNDES, totalizando aproximadamente 1400 empresas, e que detinham 80% do saldo de empréstimos do BNDES em dezembro de 2017. Ou seja, grandes empresas que buscavam crédito de longo prazo para o investimento nesta instituição.

O segundo grupo, é um conjunto mais amplo constituído de empresas que buscam financiamento no Sistema Financeiro Nacional composto, portanto, de um grupo muito mais variado, por tamanho, setor, etc.

Os dados abaixo mostram uma redução muito significativa das operações com o BNDES, muito mais importante para o conjunto exclusivo das grandes empresas do que para as demais.

As diferenças não param aí. No primeiro grupo as fontes alternativas, em termos relativos, são o mercado de capitais, a dívida externa e os créditos direcionados de outras fontes.

As demais empresas mantêm uma maior dependência do BNDES, mas expandem suas operações no mercado de capitais e com financiamento externo.

À primeira vista, os números apresentados – de modo relativo enquanto variação percentual – dariam razão às teses do BC. Todavia, quando se tomam os valores absolutos as conclusões parecem ser distintas daquelas propostas por esta instituição.

Os dados extraídos do próprio artigo do BC mostram que de fato, para o grupo das grandes empresas, o financiamento do BNDES é a única fonte a apresentar variação negativa, como aliás seria de esperar dado o caráter de longo prazo desses financiamentos.

Contudo, a grande diferença ante os dados anteriores está na importância primordial que tem a dívida externa como fonte de financiamento substituta, representando cerca de cinco vezes os recursos originados no mercado de capitais.

Um primeiro aspecto a discutir é a vantagem de substituir fontes internas de financiamento, direcionadas ou não, por fonte externa, como ocorreu preponderantemente, no período analisado. A razão substantiva para isto foi o diferencial de custo das linhas externas, vis a vis as internas, ancorado no diferencial de juros; para a qual contribuiu significativamente a rigidez dos spreads bancários, e o aumento dos juros no BNDES, mas sobretudo, na apreciação do real.

A reversão da trajetória da taxa de câmbio ao sabor da mudança de sinal da política monetária americana e do ciclo de liquidez mostram o quão pouco consistente e arriscada foi esta opção.

O fato auspicioso foi o crescimento de mercado de capitais, mas as indicações são de que esta expansão se baseou em fatores circunstanciais. Há nesse caso, um deslocamento da demanda de financiamento das empresas do mercado bancário para o financiamento direto, por razões de custo. Novamente, a rigidez do spread bancário e o encarecimento das linhas do BNDES estão por trás do fenômeno. Todavia, há aspectos novos relativos à oferta de recursos.

O primeiro deles, refere-se a queda da taxa Selic, que se reduz continuamente desde outubro de 2016, passando de 14,25% ao ano para 6,5% ao ano em meados de 2018. Essa queda da taxa de juros dos títulos públicos deslocou parte da poupança financeira para títulos de maior risco e rentabilidade, abrindo espaço para os títulos privados.

O principal título desta expansão foi a debênture de infraestrutura, ou debênture incentivada que tem como uma de suas características principais a isenção de Imposto de Renda para seus investidores, ampliando o diferencial de rentabilidade. Ou seja, a queda da taxa de juros básica da economia e isenções fiscais respondem pelo dinamismo da oferta de recursos, enquanto grandes empresas na área de serviços, pela maior parte da demanda.

Diante dessas características não seria demais especular que o dinamismo deste mercado dependeria sobretudo da continuidade das baixas taxas de juros. Esta possibilidade parece não encontrar sustentação na evolução das taxas de juros futuras que indicam claramente uma elevação a médio prazo.

Sustentar o dinamismo deste mercado em incentivos fiscais adicionais não parece razoável. Afinal, uma das críticas ao crédito direcionado, sobretudo ao do BNDES era o seu custo fiscal. Assim, a despeito do expressivo crescimento recente, que irá durar até quando a política monetária não seja revertida, tudo indica que estamos diante de uma janela de oportunidades que não perdurará.

Nunca é demais lembrar que as razões para a existência do crédito direcionado do Brasil não se fundam nos interesses ideológicos dos burocratas, mas em características profundas da economia. Assim, por exemplo, e como se está observando e já ocorreu tantas vezes, dificilmente se desenvolverá um sistema privado e de longo prazo no país com taxas de juros tão altas e voláteis e com uma flutuação cambial também marcada pela volatilidade.

*Professor titular do Instituto de Economia da Unicamp